Cabral Moncada


 
 

Há um nome que dirá muito pouco a muitas pessoas. Esse nome é Francisco Xavier Cabral de Oliveira Moncada, que ficou conhecido simplesmente por Cabral Moncada. Nunca vi nenhuma fotografia sua. Diz a história, que foi Governador-Geral da Província de Angola entre 1900 e 1903.
Foi numa rua com o seu nome, que nascia no lado este do Liceu Salvador Correia de Sá, em Luanda, que vivi em criança.
Foi nessa rua que andava de triciclo, sempre acompanhado pela minha irmã, que me vigiava e que mais tarde me ensinou a andar de bicicleta, na praceta na zona fronteira ao Liceu.
Era uma rua só de moradias, algumas geminadas como aquela onde vivemos poucos anos até partimos inesperadamente.
Eu tinha só 8 anos mas recordo-me perfeitamente como era viver naquela rua, calma, onde todos se conheciam, pois as casas eram de construção recente e receberam-nos para um futuro que acabou por ser curto.
Nunca ouvi dos meus pais nenhum lamento por termos embarcado no navio Uíge em Luanda em Maio de 1961, deixando para trás tudo o que tinham construído, inovando no ensino infantil e primário numa sociedade tão afastada do desenvolvimento.
 
Fiquei no meu imaginário com a imagem daquela casa, onde tirámos tantas fotografias, no jardim, nas escadas da entrada, nas traseiras onde se faziam os lanches com os amigos e a pouca família que vivia em Luanda.
Lembro-me do interior, com os móveis, alguns desenhados pelo meu pai, da árvore de Natal, no pino do calor, das escadas interiores onde por vezes de noite me encontravam sentado, fruto do meu sonambulismo infantil.
Ainda hoje não consigo comer um abacate, sem me lembrar do abacateiro do vizinho do lado que todos os dias nos presenteava com um abacate, que caia dos ramos do nosso lado.
Estas memórias são distantes 53 anos de hoje, mas estão muito vivas. Por vezes perguntam-me e eu próprio me questiono se não gostaria de reviver Luanda. Não sei responder a essa dúvida. Por vezes a actualidade desilude-nos. Poderá ser esse o meu receio.
 
Mas sem que nada o fizesse prever o presente veio ter comigo. No passado mês de Julho, passados tantos anos, o improvável aconteceu.
Estava numa conversa com colegas de um projecto empresarial que estamos a implementar, quando a não mais de três metros de mim ouvi alguém falar na Rua Cabral Moncada.
Quando me aproximei estavam algumas pessoas a falar de Luanda e das zonas que conheciam ou onde tinham vivido.
Mas eu só queria saber da Rua Cabral Moncada.
 
 
O impossível tinha sucedido. Uns familiares da colega moravam agora na rua. No mesmo dia envie-lhe as fotos que identificavam a minha casa, ou melhor a casa que tinha sido minha e agora era de alguém.
Passados uns dias recebi a confirmação. Não era só a mesma rua mas a casa onde agora viviam o marido e o filho era a mesma. Iam enviar umas fotografias actuais para confirmar.
Recebi hoje, 7 de Agosto de 2014, as fotos da casa. Os muros foram alteados, a casa tem uma cor mais africana. As casas estão muito alteradas, mas é natural, passaram-se 53 anos e muita coisa mudou em Luanda.
Uma coisa é certa, a casa está em boas mãos.
 

Há 30 Anos

 
 



Há 30 anos que passo à porta da esquina da Rua da Rosa com a Travessa de São Pedro, onde fica o Convento de São Pedro de Alcântara.
Numa curiosidade sobre o que se passaria dentro daqueles muros altíssimos, que cercam grande parte do quarteirão, tentava adivinhar o que se passava lá dentro.
Algumas vezes vi o portão aberto, quando uma Irmã saia de carrinha, pelo portão enorme que enche a esquina.
Se tivesse sorte conseguia dar uma olhada rápida para o fundo do túnel que dá para um pátio interior, onde nunca vislumbrava ninguém.
Durante uns anos deixei de ver o portão entreaberto e começou a haver lixo amontoado à porta. Questionei-me muitas vezes sobre o que se teria passado. Como por vezes ia à mercearia da Aninhas e da Tia, na Rua da Rosa no 279, perguntei-lhe sobre o que se tinha passado. A resposta deixou-me triste: “Já cá não estão!”.
Quando a 6 de Maio recebi o mail a dizer que tinha sido seleccionado para entrar na 1ª fase do Programa de Empreendedorismo Intergeracional “UAW – United at Work”, rejubilei com a minha resiliência.
Quando passados 5 dias a informação dizia que o UAW ia funcionar no Convento de São Pedro de Alcântara, nem queria acreditar.
A sensação que tive quando pela primeira vez aqui entrei foi muito estranha. Senti as emoções todas misturadas, como a farinha a margarina e o leite, numa tigela para fazer bolos.
Não cabia em mim, porque poderia ir começar uma nova fase da vida. Mas ao mesmo tempo estava num local que sempre tinha desejado conhecer. Quando cheguei ao pátio, olhei em redor e senti-me como o intruso que entrou num espaço que esteve sempre resguardado. Subi as escadas e pensei: “Bem, agora esta casa também é minha.”
Agora, passado mais de um mês de lá ter entrado pela primeira vez, todos os dias me cruzo com pessoas fantásticas.
Pessoas como eu, que nos últimos anos se sentiram descartáveis pela sociedade ou pelas empresas onde deram muito de si.
Colegas como eu, que querem ser úteis e que consideram que a riqueza do país está mais débil, por não estarem a gerar valor. Jovens mais e jovens menos que queremos sair daqui com um projecto de vida sustentado numa equipa que todos estamos à procura.
Mesmo que qualquer um de nós não passe à fase seguinte, há uma coisa que já ninguém nos tira, o orgulho.
O orgulho que temos, de ter participado num processo pioneiro que poderá no futuro mudar o paradigma da sociedade no modo como olha para as diferentes gerações que não estão umas contra as outras mas que estão no mesmo barco, para termos uma sociedade melhor e mais justa.
Mas há uma coisa que não nos podemos esquecer. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa cria excêntricos através dos premiados do Euromilhões. Hoje, felizmente sinto-me um excêntrico e nem gastei 2€ na aposta mínima. A aposta foi em nós … pessoas.
Tudo isto só foi possível porque há uma Equipa a quem temos de agradecer.



À Maria do Carmo, ao Gustavo, ao Carlos, ao Francisco, à Paula, ao Manuel, ao Duarte, à Senhora da Limpeza, à Senhora da Portaria (das quais infelizmente não sei o nome, mas que todos os dias nos recebem com um sorriso) (*), a todos os formadores que nos têm motivado.

O tratar-vos assim não é uma falta de respeito, é o reconhecimento de uma grande admiração por terem acreditado nas pessoas.

Obrigado!

(*) Na Limpeza, Elvira; Na Portaria, Maria Paula.


 
 


Era Proibido ...


 
 
LICENÇA DE PORTE DE ISQUEIRO



 
 
Criada por Decreto – Lei em 1937, a licença de porte de isqueiros ou acendedores era obrigatória não apenas para a posse do isqueiro mas também para a sua simples utilização e era nominal e de renovação anual. A infracção implicava o pagamento de uma multa de 250 escudos (uma soma considerável à época) que revertiam em 70% para o Estado e em 30% para o agente autuante. No caso de haver um denunciante, este teria a metade da verba do agente. Esteve em vigor até 1970.
 
AUTORIZAÇÃO DE CASAMENTO

 
 
As professoras primárias precisavam de uma autorização especial, assinada pelo próprio ministro da Educação para poderem contrair matrimónio. Para a obterem, necessitavam de fazer prova de que o noivo tinha um bom comportamento moral, bem como rendimentos ou vencimentos, documentalmente comprovados, em harmonia com os da professora. Outras profissões, como hospedeiras da TAP, enfermeiras e telefonistas, estiveram vedadas a mulheres casadas.
 
A COCA-COLA

 
 

 
Em 1929, marca americana, antecipando a entrada em Portugal, encomendou um slogan à agência de publicidade onde Fernando Pessoa trabalhava. A criação do poeta do poeta é hoje célebre – “primeiro estranha-se, depois entranha-se”, mas a Coca-Cola acabou por chegar a Portugal apenas em 1977. Curiosamente foi sempre sendo permitida a sua venda nas colónias portuguesas. Mais tarde apareceu a Spur-Cola da Canada Dry que desapareceu nos anos 80 do século passado.
 
 
AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM AO ESTRANGEIRO
 
 
Uma mulher casada necessitava de apresentar, em conjunto com o passaporte, uma certidão passada em papel selado e reconhecida por notário, em que o marido a autorizava a sair do país. Era também habitual os passaportes terem ambos os elementos do casal no mesmo documento, podendo ser utilizado pelo marido individualmente, mas no caso da mulher só podendo ser utilizado por ela quando acompanhada do marido.
Na prática, uma mulher casada tinha mais obrigações e restrições do que uma solteira. Ao marido, considerado o chefe de família, cabiam prerrogativas como a abertura de correspondência dirigida à mulher ou de exigir judicialmente o retorno de uma mulher que saísse de casa. Esta última disposição esteve em vigor até 1967, quando o Código Civil foi revisto.
 
RECONHECER A VERDADEIRA PATERNIDADE DE UM FILHO FORA DO CASAMENTO

 
 

Se uma mulher casada tivesse filhos de outro parceiro, era forçada a registá-los como sendo filhos do marido, sem qualquer hipótese de apelo ou rectificação. Esta disposição, com origens mais remotas, manteve-se inalterada até à mesma revisão de 1967, na qual se concedeu um prazo de cinco meses para intentar acção de impugnação de paternidade. Neste período, os tribunais foram inundados de pedidos, sobretudo no sul do país, de hábitos menos conservadores.
(Texto base - Agenda Cultural de Abril de 2014 da Câmara Municipal de Lisboa)


A Aula

 

 
Chegou e sentou-se lá ao fundo. Está na última das doze filas sala. Nas suas costas só tem a parede que lhe dá uma sensação de protecção.
Quase sempre, quando ali chega, senta-se na cadeira junto ao canto, mais longe da entrada.
Quando chegou o “seu” lugar já estava ocupado. Isso perturbou-o, pois ali ficava protegido de dois lados.
Hoje atrasou-se. No caminho para aqui, encontrou um colega de escola. Tentou fugir dos olhares dele, mas não resultou. Quando ambos já estavam de costas, depois de se cruzarem, sentiu ser puxado pelo braço.
Não havia dúvidas. Era mesmo o colega de carteira de há trinta e tal anos que o tinha começado a chamar Gordo Badocha.
Agora, passado tanto tempo, já estava magro, tentando esquecer o passado.
Acontecia-lhe periodicamente. Sempre que pensava que já tudo estava ultrapassado, algo inesperado o impedia de seguir em frente. O que pensava que já estava arrumado num canto da memória, voltava ao de cima, contra a sua vontade.
Sentado mais a meio da última fila da sala, ainda não tinha identificado quem o ladeava.
Olha disfarçadamente para a direita. Está um colega com quem tinha antipatizado desde a primeira hora. Não pode fugir e mudar de sítio. Todos os lugares da sala já estão ocupados.
Do outro lado está uma mulher. Está demasiado perto para poder olhar directamente sem ser pelo canto do olho, mas pelo que conseguiu observar terá mais ou menos a sua idade. Os seus olhares nunca se cruzam até ao intervalo.
Quando ao fim de duas horas, saem da sala para uma pausa e apanharem ar, encontram-se frente a frente.
Ela sorri-lhe e diz-lhe:
“Não te lembras de mim?”
Ele mostra um ar de espanto, não reagindo.
“Desculpa, mas não me lembro do teu nome. Na escola só te conhecia por Badocha. Agora estás tão magro que quase não te reconhecia.”
Ele continua sem dizer uma palavra.
“Se calhar não te lembras de mim. Eu estava na 3ª classe e tu andavas um ano mais à frente.”
A boca dele continua fechada. Tentava recuar muitos anos. Exactamente para o período que tentava apagar.
“Quando andávamos na primária eu tinha um fraquinho por ti.”
Ele, nem quer acreditar no que está a ouvir.
“Éramos muito miúdos. Desde o dia em que estava a chorar no recreio e tu vieste ter comigo e me deste uma flor branca, um malmequer, fiquei sempre de olho em ti. Só mais tarde percebi o que sentia.”
O ex-colega recorda a vida até aos quarenta e dois anos, que agora tem. Nunca teve uma mulher. As relações com o outro lado da vida não tinham existido. Nunca se imaginou a partilhar sentimentos com alguém.
“Não aguento mais, tenho que dizer-te. Gosto muito de ti e quero viver contigo.”
Paulo, pela primeira vez, dá um beijo, mas não como os que estavam guardados para a sua mãe.



Eles fogem!



 
 
 
Não consigo perceber o que se está a passar.
Abre-se o jornal, liga-se a televisão, e repetem-se as reportagens sobre os emigrantes de hoje.

As minhas dúvidas levam-me a ir ao dicionário esquecido, ver o significado da palavra emigrar. Talvez ali haja alguma resposta.
Encontro a definição: emigrar – sair voluntariamente do local onde se vive para se estabelecer noutro.

A realidade do tempo ultrapassou o significado do escrito. Quando questionadas, as respostas dadas pelas pessoas que agora se vão embora, dizem-nos que não foi por vontade própria que estão a partir. Foram obrigadas a isso, porque não vêm futuro no que deixam para trás.
Numa primeira fase partem os homens da família, muitos deles novos e alguns de mais idade. Posteriormente seguem-se as namoradas ou as mulheres, por vezes também acompanhadas dos filhos.

Nas décadas de 60 e 70 partiam só homens, muitas vezes a salto, passando a fronteira clandestinamente, para fugirem à guerra da miséria e à miséria da guerra.
Na altura o destino era a Europa da esperança, encontrada em França, Alemanha, Suíça ou Luxemburgo. Hoje, como que a quererem ficar mais longe do que deixaram, vão para Angola, Estados Unidos, Suécia, Tailândia ou Brasil. Curiosamente este último país de onde recebemos tantos imigrantes tornou-se um destino dos nossos emigrantes.

Cinco décadas atrás os emigrantes-homens não podiam regressar quando queriam pois muitas vezes esperava-os a incorporação ou até a prisão. Trabalhavam em condições sub-humanas em tarefas que os residentes já evitavam ter por serem trabalhos pesados, desclassificados e menores. Viviam em bairros de lata em situações degradantes para a condição humana. Mas enviavam o dinheiro que conseguiam poupar para casa, para onde queriam voltar num dia de esperança. Muitos deles só o concretizaram a partir de 74 quando a liberdade e as condições de vida se alteraram radicalmente.
Hoje em dia, em consequência da evolução dos tempos que já passaram, os novos emigrantes, já partem alguns deles com viagens de regresso acordadas com o novo empregador. As condições de vida estão a anos-luz das gerações anteriores. Ao contrário do que na vaga de emigração meio século antes tinha acontecido, alguns vão exercer cargos de nível superior ou de direcção, mas sempre colmatando as faltas dos autóctones. Outras vezes vão completar aprendizagem e formação base que já adquiriram. Muitos deles, à partida, levam o desejo de a família mais próxima se lhes juntar posteriormente. Provavelmente nunca enviarão dinheiro, pois a ambição de construir novas vidas noutros lugares é muito forte. A única saudade que deixam para trás é a restante família, o sol ou a comida.

Mas a situação mais confrangedora é a quebra de elos familiares que poderão nunca mais serem retomados. A separação de gerações de filhos e netos de pais e avós é assustadora. Criou-se um novo tipo de família desestruturada, que os contactos via Skype, não vão compensar.
Quando olho à minha volta já não vejo quatro primos que se espalharam pelo mundo – Inglaterra, Brasil, Estados Unidos e Gana. Já não encontro amigos que estão em Londres, Estocolmo, Boston e Luanda.

Alem dos que já não estão connosco, por razões naturais, a família e os amigos está a reduzir-se.
Será que assim este país tem futuro?

Eles fogem! Acho que só não foge quem não pode ou já não tem forças para o fazer, reagindo.
Há um ditado português, que diz: “Longe da vista. Longe do coração!

Temos todos de combater este sentimento.
Socorro-me de um outro ditado: “A Esperança… é a última coisa a morrer!”
 
Havemos de dar a volta a isto tudo que nos cerca e oprime!

 

O teu amor é meu consolo

 
 
Quando, passado um dias, estava a limpar o pó da cómoda, já com gerações na família, onde tinha encontrado o cartão de origem e destino desconhecido com o texto “Por ti minha alma soffre”,eis que surgiu um outro entalado numa gaveta mais a baixo com os dizeres “O teu amor é meu consolo”.
Fiquei perplexo.
Teriam os dois sido trocados entre as mesmas duas pessoas?
Teriam mesmo sido enviados ou ficaram retidos na timidez daquela época? Se foram utilizados, qual terá sido o primeiro e o segundo a ser entregue?
O segundo poderia ser considerado algo atrevido ao tempo, por ter uma imagem fotográfica de um beijo na boca talvez só concretizado após um amor aceite, longe dos olhares alheios.
Será que o primeiro cartão encontrado não foi enviado, tendo sido guardado e substituído pela compra deste último, mais explícito e mais directo ao amor de partilha solicitada?
Mas estranhamente ao virar o postal ele não tem nada escrito. Nenhuma palavra a reforçar o sentimento. Nenhum nome a quem se dirigia. A probabilidade de que quer o primeiro cartão quer o segundo não terem sido enviados é muito grande e quase certa.
Questionei-me de imediato.
Quais teriam sido os meus antepassados que teriam adquirido os dois cartões?
Quantas gerações já teriam passado desde então?
Terá sido um avô, ou mesmo um bisavô?
Mas porque é que ponha sempre na minha cabeça a hipótese de ter sido um ou dois homens a comprarem os cartões? Porque é que não podem ter sido uma ou mesmo duas mulheres distintas a comprá-los e a não os terem enviado.
Uma coisa é certa. “Por ti minha alma soffre” e “O teu amor é meu consolo” não cumpriram as suas funções. Terão morrido nos fundos das gavetas, tal como um ou dois amores que não se terão concretizado.

 

A Viagem

 
 

Joana abandona as partidas do aeroporto de Lisboa. Já passa das duas da manhã da noite de sexta-feira. Tinha ido a contragosto, levar o seu marido, que partia para Luanda, no voo TP0289, com a hora prevista de descolagem às 23H15. A despedida não tinha sido como tinham combinado no dia anterior, quando Rafael lhe tinha dito que ela não precisava de ir, pois apanhava boleia do colega com quem ia seis meses para África, onde ambos nunca tinham estado.

As semanas anteriores foram de grande agitação no casal. Ao fim de catorze anos de casados era a primeira vez que iam estar separados. A vida permanente em comum que tiveram desde o casamento idílico que se seguiu a um namoro prolongado de adolescentes criou a cada um uma sensação de falta de espaço próprio que estavam a ter dificuldade em gerir. Tinham perdido a autonomia individual.

Recentemente, Rafael passara pela azáfama de tratar do passaporte, do visto que nunca mais era libertado, das vacinas necessárias, da alteração das contas bancárias, para não surgir nenhum percalço que não pudesse tratar de longe enquanto estivesse ausente.

Tinha aceitado o trabalho no estrangeiro, para compensar com o alto salário que iria receber, a falta do ordenado de Joana desde que tinha ficado desempregada no início do ano, quando foi despedida da agência de publicidade onde sempre tinha trabalhado, a recibos verdes, como criativa.

Nos últimos meses, com o stresse da grande alteração de vida pela qual iria passar, Rafael tinha descurado a atenção e mimos que anteriormente dedicava a Joana. Sem o pretender, tinha-se afastado dela, talvez por querer antecipar o distanciamento físico que iriam ter com a emigração temporária que se aproximava.

Por seu lado Joana, desde Janeiro que estava em casa a tempo inteiro. Tinha tempo livre em excesso. Ainda não tinha conseguido encontrar maneira de como ocupar o horário do dia de trabalho agora vazio.

Inicialmente ainda se encontrou, para beber café ou almoçar, com os ex-colegas que tinham ficado na mesma situação que ela. Mas isso não a tinha ajudado a limpar a cabeça. Era um encontro de troca de angústias e de desespero que cada um(a) vivia, mas que Joana queria esquecer, para poder avançar com a sua vida.

No último período, em que ainda trabalhava começou a sentir algum interesse, pelo colega Vasco.

Ainda agora, a sair do aeroporto para ir ao seu encontro, não consegue perceber o que viu nele, desde o jantar de final do ano anterior em que ainda trabalhavam juntos na agência de publicidade “Look”, empresa onde ele ainda está a trabalhar.

Logo ele, que era da área financeira, com quem ela tinha permanentemente grandes guerras por achar que limitavam e castravam toda a imaginação do sector criativo da empresa. Sempre tinha considerado que todos os colegas daquele sector tinham as cabeças formatadas aos números, não conseguindo viver as emoções da vida.

Logo ele, que se aproximava dos sessenta anos, com cãs brancas e alguma barriga que Joana, vinte e dois anos mais nova, desdenhava habitualmente nos homens.

Logo ele, que tinha sido o porta-voz da administração invisível da empresa, sediada algures no estrangeiro, a dizer-lhe no primeiro dia do ano, que já não precisavam mais dos seus serviços, não sendo necessário ir trabalhar a partir do dia seguinte.

Logo ele, que a tinha feito sentir-se descartável, como uma garrafa de sumo já bebida ou uma fralda suja.

Joana enquanto aguarda, dentro do carro imóvel, na fila do parque de estacionamento do aeroporto para poder sair pela Via Verde, passam-lhe pela memória os últimos meses sem trabalho.

Depois de uma vida sem horários e de dedicação completa ao emprego e à carreira profissional, entrou num marasmo em que as horas não passam, ou correm a muito custo.

Inicialmente ainda continuou a ir ao ginásio, como forma de gastar energias e passar o tempo. Mas a falta de prazer e de dinheiro levou-a a abandonar o exercício físico. Começou a comer descontroladamente. Retomou o hábito de fumar, abandonado com muito esforço, uns anos antes. Descuidou-se e desleixou-se no visual que sempre tinha tido cuidado e atraente, enquanto trabalhava. Raramente se pinta. Quando Rafael saia de casa para trabalhar, ficava deitada a dormitar, porque nada a obrigava a levantar. Depois passeava-se de camisa de noite ou de robe pela casa, enquanto não se estiraçava em frente da televisão num zapping imparável. Quando via um dos anúncios em que tinha colaborado na “Look”, ficava tensa, irritada e desligava a televisão, atirando o comando para longe.

Passado algum tempo as idas à cozinha e à dispensa à procura de qualquer coisa para comer deram-lhe a ideia que, como gostava de fazer bolos e doce, podia começar a vendê-los a particulares e assim ocupar os dias, ganhando ao mesmo tempo, algum dinheiro que Rafael sempre resistia a dar-lhe. O facto de estar dependente, ela que sempre fora independente desde muito nova, estava a dar cabo dela. Tinha-se habituado a gastar todo o dinheiro que recebia em bens supérfluos, principalmente em roupa, sapatos e acessórios, descurando a poupança para algum imprevisto, como o que lhe veio a acontecer.

Quando começou a amadurecer a ideia do negócio da comida, veio ao de cima a experiência profissional. Tinha de arranjar um nome para o divulgar na internet e nas redes sociais. Surgiram-lhe vários nomes: Sabores de mim; Os Meus Sabores; Doces Meus, Os Meus Doces. Mas nenhuma das hipóteses a satisfazia. Tinha sido tão criativa quando a imaginação lhe era encomendada e agora não o conseguia fazer para si própria. Suspeitava que a inspiração tinha morrido, quando saiu pela última vez a porta da “Look”. Pôs-se diante do espelho e questionou-se o que se passaria com ela.

Passou por uma fase de grande desânimo e um estado de depressão, da qual conseguiu sair pelos seus próprios meios, contra todas as expectativas, as de Rafael incluídas.

Muito ajudou a continuação dos contactos que nunca deixou de ter com Vasco. Encontravam-se inicialmente num café ou restaurante num local menos conhecido. Quando os encontros se tornaram mais frequentes, Joana inventou uma amizade do ginásio fictícia, chamada Vanda, escondendo assim do marido o que realmente andava a fazer. Quando se encontravam à noite, Joana dizia que ia ao cinema. Para se precaver de alguma pergunta inesperada de Rafael, consultava no site do cinema o resumo do filme e os actores intervenientes.

Joana não se reconhecia pelo facto de estar a passar por uma situação que sempre condenara. Vivia o cliché de uma mulher, que numa fase frágil, arranjara um amante. Que enganava o marido, não sendo capaz de acabar com um casamento que já não vivia. Que tinha uma relação com um homem casado que sucessivamente prometia a troca da mulher por si. Estava completamente fora dos seus padrões morais e sociais.

Finalmente quando Joana consegue sair do parque do estacionamento número dois do aeroporto, por o problema informático que havia no modo de pagamento já estar resolvido, tenta telefonar novamente a Vasco. Já anteriormente quando soubera que o avião estava atrasado cerca de duas horas para a partida, tinha ido à casa de banho e tinha-lhe telefonado, para o avisar da demora. Estranhou o facto de que agora que se ia “libertar” de Rafael, durante seis meses, tenha recebido uma reacção tão fria e indiferente da parte de Vasco. Talvez tivesse adormecido enquanto a esperava.

Agora quando lhe telefona, pela segunda vez, Vasco não atende. Mas de qualquer modo segue a caminho do encontro combinado, na casa emprestada ali próximo, na Alta de Lisboa.

Apesar da hora, o trânsito está um caos na Segunda Circular. Os carros só circulam numa faixa para cada lado. Num sentido houve um acidente, provavelmente grave. Há várias ambulâncias e viaturas dos bombeiros e da políca, assinalados pelos pirilampos azuis e amarelos. Na direcção em que Joana vai, estão a asfaltar grande parte da via a que se acumula a curiosidade dos automobilistas sobre o que se passa do outro lado.

Mais um contratempo para o reencontro dos dois amantes.

O que Joana tem vivido até a tem feito esquecer o estigma de desempregada com que já se sentiu. O negócio dos doces vai-lhe ocupando o tempo minimamente, dando-lhe dinheiro para as despesas pessoais que reduziu de uma forma drástica. Passou a ter de decidir onde o gasta com parcimónia. Só o essencial ficou, o desnecessário desapareceu. Deixou de se passear pela baixa ou pelos centros comerciais a cobiçar nas montras, roupa da moda.

Só sai de casa para as entregas das encomendas, a ida ao supermercado ou para os encontros fortuitos com Vasco. As saídas com Rafael já são raras, desculpando-se sempre com os doces e bolos que tem que fazer, apesar de os poder pôs no forno ou no frigorífico em outra altura qualquer.

Joana acaba de estacionar à porta da casa onde combinou ir ter.

Espreita para cima, para o segundo andar esquerdo. A luz da sala ainda está acesa. Ao contrário do que pensou no caminho até ali, Vasco não desistiu de esperar por ela.

Toca à campainha com o toque combinado, por não querer utilizar o código de quatro algarismos que abrem a porta. É uma forma que acertara, desde o início da relação que têm, caso surgisse algum imprevisto, que impedisse Joana de subir. A porta não se abre. Vai para o carro e volta a olhar na direcção da janela iluminada, onde surge Vasco que lhe faz um sinal para ela subir.

Quando entra em casa, Joana é recebida com um beijo numa das faces, a fugir da boca, ao contrário do que é habitual. Vasco diz-lhe que já não a esperava ver nessa noite, por ser tão tarde, apesar de ter adormecido no sofá a ver televisão sem som. Queria ter uma conversa calma com ela, mas achava que não era a hora apropriada. Quando Joana se decide ir embora, e lhe vira as costas, Vasco puxa-a para si, por um dos braços com demasiado força e diz-lhe de supetão: “A nossa relação tem de acabar. Aliás, ela para mim já acabou, pois não posso continuar a fazer isto à minha mulher, de quem nunca deixei de gostar, apesar da nossa aventura.”

Joana fica sem palavras, solta-se, e sai disparada pela porta. Contrariamente ao seu comportamento habitual, não é capaz de enfrentar o balde de água fria que tinha acabado de receber. Nas situações adversas sempre dera luta e reagira frontalmente, argumentando e lutando pelo que achava melhor. Pela cabeça passa-lhe um pensamento que já tinha negado a si própria. Talvez Vasco se tivesse aproveitado da sua fragilidade da situação de não ter conseguido trabalhar depois da saída extemporânea da “Look” e do período conjugal menos bom, que tinha passado posteriormente.

Joana vai para casa e atira-se para o sofá na sala, meia deitada, meia sentada. Olha no vago. À frente dos seus olhos está uma garrafa de gim que na noite anterior tinha aberto e bebido cerca de um terço, enquanto Rafael fazia a mala no quarto. Resiste a beber, desviando o olhar e virando-se para a estante onde estão espalhadas fotografias emolduradas dos bons momentos que viveu com o marido. A fotografia mais escondida, num canto, é a tirada num dia em que decidiram ter um filho, que nunca chegaram a concretizar.

Fica num estado de letargia alguns minutos, que lhe parecem horas. A cabeça está num turbilhão de sentimentos cruzados que não está a conseguir controlar. Mantem-se numa moleza, que mesmo assim não a deixa dormir. Quando o dia nasce, a luz obriga-a a semicerrar os olhos. Não tem forças para ir baixar a persiana.

Joana olha para o telemóvel para ver as horas. No mesmo instante, ele vibra e toca, surgindo o nome Rafael.

Não estava à espera. Quando atende, ouve do outro lado: “Olha, tenho de ser muito rápido. Cheguei bem e apesar de só serem dez horas está um calor húmido insuportável. Mas o que eu queria mesmo dizer-te é isto: Apesar de tudo o que possa ter acontecido. Gosto muito de ti, meu amor!”.

Quando Joana se prepara para responder, a chamada cai.

Já sem Rafael do outro lado, solta um gemido e diz qualquer coisa inaudível.

 

 


Por ti minha alma soffre


 
 
Encontrei este cartão ao limpar uma cómoda esquecida no sótão. Estava debaixo do papel, queimado pelo tempo, que forrava o fundo da última gaveta. Alguém o quis esconder de olhares indesejados, virando o texto contra a madeira cheia de caruncho. Curiosamente o cartão sobreviveu incólume a gerações que por ele passaram sem descobrirem o seu esconderijo.
Não consigo saber a sua origem.
A cómoda já mudou várias vezes de casa dentro da mesma família, pelo desmanchar de casas sucessivas de quem a tinha consigo ou por não se enquadrar no tipo de decoração. Deve ser uma das peças de mobiliário mais viajada do país. Não porque tenha grande valor em si. Não se lhe reconhece nenhum estilo de época.
As suas quatro gavetas devem guardar sentimentos secretos.
Por o cartão se encontrar intacto só há duas opções: ou não foi enviado ao pretenso(a) candidato a namorado(a) ou foi devolvido para dar uma esperança de poder haver nova tentativa, quem sabe, talvez de resposta mais positiva.
Uma coisa é certa, no caso de o cartão ter sido enviado não houve nenhuma resposta negativa, ao pedido de namoro, pois o canto superior esquerdo não foi dobrado, conforme o procedimento indicado.
No entanto, também não teve nenhuma reacção positiva, com a aceitação do pedido de namoro, pois o canto superior direito encontra-se irrepreensível, sem nenhuma dobra.
Mas o que mais me surpreendeu na missiva amorosa é a circunstância de que a frase “Por ti a minha alma soffre” estar associada ao pedido “E feliz seria se V. Ex. aceitasse os meus protestos de amor”.
Hoje em dia a palavra protesto identificamos com tudo o que vemos ou nos é dirijo e que consideramos que é injusto e assim queremos manifestar a nossa discordância. Hoje, nunca será possível associar estas duas palavras: protesto e amor. Poderá haver dedicação no protesto, mas nunca amor.
O nosso amor-próprio ou auto-estima, o nosso amor por quem nos é próximo, seja familiar ou amigo está isento de protesto, mas está cheio de dedicação e entrega.
Por isso a frase “Por ti a minha alma soffre” não tem sentido quando o amor existe. Ele é uma partilha de sentimentos com quem mais gostamos.


O Plano



 
 
Encontrámo-nos todos na mesma sala. É o início de uma aula. A distância que separa cada um desde a saída da escola mede-se em períodos tão díspares como poucas dias, anos, ou mesmo gerações.
As quase vinte pessoas presentes, nunca se encontraram e portanto não se conhecem.
Chegámos ali todos com uma premissa comum: estamos todos desempregados.
O modo como cada um encara o actual estigma pessoal e a sociedade, que os pôs de lado, temporariamente ou definitivamente, vai reflectir-se no comportamento de cada um ao longo do tempo de convívio.
Agora a escola, chama-se eufemisticamente formação.
Aqui, a separação das origens sociais de cada um que fizeram algumas das pessoas presentes terem na sua escolaridade seguido o ensino público ou o privado, não existem.
Aqui, o que separa uns dos outros são experiências de vida de cada um, ao nível pessoal e profissional. Como cada um de nós encara a vida, o que queremos dela para nós e para os que nos rodeiam, sejam familiares, amigos ou simples conhecidos.
Aqui, o que vai vir ao de cima ao longo dos dias que estivemos juntos e partilhámos vivências pessoais é que surgem três grupos distintos que vão coabitar.
Uns que estão amargos, ou mesmo feridos da situação em que se encontram e não são capazes ou não querem sair de um buraco onde se esconderam e de onde não conseguem sair só por si.
Um segundo grupo de quem apesar de se encontrar muito desanimado com a actualidade que vive, não perspectiva que exista uma luz ao fundo de túnel que os ajude a reagir, apesar de já terem passado anteriormente por outros períodos difíceis que já conseguiram ultrapassar.
Um terceiro grupo, mais pequeno, onde eu próprio me incluo, que considera que o sair da situação em que todos nos encontramos, do lado de cá da professora, só passa por nós e como encaramos o futuro, seja ele de médio prazo ou longínquo no calendário. Só passa como, independentemente da idade ou das fases da vida já percorridas, queremos aprender e fazer coisas novas. Como podemos mudar de vida profissional, apontando a aprendizagem nesse sentido. Como nos sentimos bem com nós próprios quando fazemos voluntariado, seja cultural ou social. Estamos a dar aos outros um pouco de nós, nem que seja a troco só de um obrigado. Um agradecimento que muitos de nós nunca recebemos de quem nos empregou e que nos descartou.
Bem, mas o curso de formação por onde todos passámos, cada um com o seu olhar pessoal era de “Plano de Negócio”.
Na última aula, no quadro branco estão quatro equações:
PASSIVO = OBRIGAÇÕES
ACTIVO = BENS + DIREITOS
ACTIVO = PASSIVO + CAPITAL PRÓPRIO
CAPITAL PRÓPRIO = ACTIVO – PASSIVO
Nestas quatro linhas estão algumas das regras de um negócio, mas se não nos dedicarmos sempre e constantemente ao capital próprio da nossa vida, com a nossa valorização pessoal e profissional, então atingimos a falência pessoal.