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Vidas Cruzadas
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Entretanto eis que chega ao mesmo grupo um jovem casal que entusiasmado conta que tinham regressado de uma viagem de trabalho de seis meses naquele paraíso africano e que deveriam convencer o pai Francisco a voltar para ver como diferente e moderno está o país que entretanto se tornou independente, moderno e em fulgurante progresso.
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Vidas Cruzadas 1
O
João nasceu em África, numa época em que tudo parecia um paraíso aos seus olhos
de criança.
Nem
mesmo as histórias que a mãe, a avó, a irmã e a dedicada empregada lhe liam
carinhosamente para dormir melhor, ultrapassavam a realidade que ele vivia.
Talvez só mesmo a Alice, aquela do País das Maravilhas, conseguia ser mais
sortuda.
Muitos
anos mais tarde, na sua meia-idade, e fruto do bichinho que os pais lhe criaram
do gosto pelo cinema, o João iria encontrar um actor tão ou mais feliz que ele
na sua meninice, Johnny Depp, nos filmes de Tim Burton como Charlie e a Fábrica de Chocolate ou Eduardo Mãos- de-Tesoura.
Quando
todos já dormiam, e pensavam que ele já estaria num sono de criança, naquela
casa mesmo em frente à praia, levantava-se e, sempre a dormir sentava-se nas
escadas e misturava a realidade com o imaginário das histórias.
Era
a Cinderela- A menina que ele esperava, todos os dias à janela, que passava
para a escola, sempre saltitando, protegida pela mão da mãe ou pelo ar austero
do pai. Que pena aqueles dias em que os pais ficavam em casa, e diziam que não
trabalhavam, por ser fim-de-semana. Mas o João não entendia o que era isso. Só
sabia que nesses dias, não via aquela menina dos seus encantos.
Era
o Peter Pan- O rapaz que encontrava no jardim e gostava de voar no baloiço do
jardim, onde aprendeu a andar de bicicleta e pela primeira vez brincou com uma
bola, que não tinha em casa.
Era
o Bambi- O carneirinho mimoso e fofinho, do vizinho do lado que pedia uma festa
sempre que o via.
Era
o Rezingão- Um dos sete anões da Branca de Neve. O senhor do seu tamanho que
estava todos os dias, à porta do mercado, a querer vender a sorte aos outros
esquecendo-se de si próprio.
Eram
a Bela e o Monstro- O casal que morava no mesmo bairro. Ela era linda e com um
ar muito cândido e maternal e ele fazia lembrar um orangotango, com mais meio
metro de altura e cara de poucos amigos.
Era
um dos ladrões do Ali Babá- O mariola que com ele brincou com os berlindes, e
quando se distraiu na sua rua, por o terem chamado para lanchar, meteu-os no
bolso e desapareceu para sempre.
Era
o Velho, o Rapaz e o Burro- O avô que lhe tinha dado os berlindes e o sentava alternadamente
na sua perna esquerda e direita, para fazer cavalinho e quando ele perguntava
que bicho era aquele da história, lhe dizia que ali não havia aquele tipo de
bicho, que provavelmente só havia de conhecer as suas orelhas quando fosse para
a escola.
Era
o Patinho Feio. O cisne de uma cor desagradável à vista e que era marginalizado
pelos outros apesar de dançar no lago, com mais graciosidade do que todos.
Mas,
depois, quando o João estava embrenhado e embalado por estas histórias
fantásticas, surgia uma das mulheres da sua vida e levava-o de volta para a
cama onde ficava acordado a ouvir a chuva que batia na janela, aberta por cima
da cama, e o salpicavam. Ainda hoje João tem na memória, talvez a recordação
mais antiga da sua vida, esta sensação de vários sentidos, o som da chuva nos
vidros, a frescura agradável dos pingos na cara.
João,
de apelido Menino, cresceu e foi para a escola. Era uma escola especial, pois
apesar de na sua rua brincar sempre com meninos de todas as cores, aqui tinham
todos a mesma cor. Perguntou aos pais porquê. Explicaram-lhe que apesar de
viverem todos no mesmo sítio, havia uma coisa chamada dinheiro que cada um tinha
em diferentes quantidades o que fazia depender o poder ir para esta ou aquela
escola. Era mais ou menos como os brinquedos que ele tinha muitos e havia
meninos que não tinham nenhum. Só aí o João percebeu porque é que os berlindes
tinham desaparecido.
A
partir daí, quando partilhava os brinquedos com os meninos que apareciam para
brincar com ele na sua rua, passou a dar-lhes alguns dos seus, para eles
levarem para casa e brincarem com os irmãos.
Na
escola conheceu as letras que se podem arrumar de várias maneiras e fazer palavras
tão diferentes, como amor, roma, mora, ramo, romã, todas com as mesmas letras.
Encontrou-se também com os números, que são poucos, mas todos juntos podem
significar muito.
Perguntou
à professora, aquela senhora que lhe lembrava a avó que só conhecia das
fotografias que chegavam num envelope de muito longe, como era possível com tão
poucas letras e números fazer tantas coisas. Ao que ela lhe disse que em todo o
mundo, uma coisa redonda e grande onde nós estamos, as palavras se podem
escrever de vários modos que se chamam línguas e que nem todos usamos as
mesmas. Afinal era mais complicado do que ele imaginava. Enfim, coisas dos
crescidos!
Na
escola todos os meninos eram colegas, mas só alguns eram amigos, pois
partilhavam os mesmos sonhos e gostos, como o Mickey, o berlinde, a bola e os
patins. Começou a perceber que as meninas eram muito diferentes e gostavam de
outras coisas como bonecas, brincar às casinhas, às enfermeiras e falar pelos
cantos aos ouvidos umas das outras atrás das mãos que escondiam as bocas.
Também
lhe ensinaram muita coisa que ele tentava guardar na cabeça, para quando
precisasse mais tarde. Apercebeu-se que apesar de a professora ensinar o mesmo
a todos, nem todos tinham a mesma capacidade de arrumação. Havia alguns meninos
que como justificação para isso, diziam que o cérebro lhes fugia e tinham
dificuldade em agarrá-lo e que a professora tinha de os ajudar a apanhá-lo.
Uma
vez a professora contou a história da Carochinha e os seus amigos passaram a
chamar-lhe João Ratão por acharem que ele gostava muito da Maria Carocha, por
lhe ter dado uma flor e aquele berlinde da mesma cor dos olhos dela. Ele até
gostava mais de ser Ratão, porque o nome Menino, pensava ele, não o deixava
crescer tão depressa como desejava. Quando falou nisso em casa, os pais
disseram que o nome é uma das coisas que fica agarrado a nós para toda a vida e
que só as meninas quando são grandes podem ter outros nomes. Aí ele percebeu e
teve que aceitar que ia ser Menino para sempre.
Num
dado momento os pais disseram que iam viajar, no seu carro a que chamavam
carocha, pois o país onde estavam era imenso e podiam andar semanas sem parar.
Nessa viagem encontrou pacaças, elefantes, leões, crocodilos, hienas, cobras e
toda uma série de outros bichos que só vira nos livros. Reparou num comboio que
apitava a cumprimentar os homens e mulheres que estavam a trabalhar no campo a
apanhar algodão, café ou mandioca. Ficou a conhecer umas plantas que vivem no
deserto com um nome estranhíssimo, Welwitschia
mirabilis, e que têm cores diferentes se são masculinas ou femininas.
Chorou quando ao
atravessar um rio a água era tanta que passava por cima da ponte entrando por
uma porta do carro e saindo pela outra, numa zona onde estavam afogados camiões
à espera que a chuva parasse.
Depois, como as estradas
estavam cortadas, pois não parava de chover havia três semanas, voltaram para
casa, com o carro na barriga de um barco. Foi uma viagem de dois dias, muito
alegre e divertida, com muitas brincadeiras e jogos para enganar o tempo da viagem
e chegar mais depressa.
Um
dia, os pais dos meninos de outra cor revoltaram-se por os seus filhos não
terem algumas coisas, incluindo brinquedos. Assustaram toda a gente com uns
tiros como nos filmes de cowboys, só que sem cavalos e sem xerifes. Os pais
explicaram-lhe que não sabiam o que ia acontecer a seguir, mas era natural o
que se estava a passar, pois não era possível continuar tudo como estava. Já
havia outros lugares, onde falavam outras línguas, e onde tinha acontecido a
mesma coisa e era uma questão de tempo chegar ali o que eles chamavam “a
revolta”.
Passado
alguns dias, quando chegou da escola, começou a ouvir a mãe a chorar que, com
dificuldade, por as palavras se enrolarem na boca, disse a João e à irmã que o
pai ainda ficava mais uns tempos para encaixotar as coisas, mas tinham de
partir rapidamente para a terra longínqua onde os pais tinham nascido e que
iriam morar com os avós que João não conhecia.
Foram
de barco, mas desta vez, João não entendia porque quase não havia homens, só
praticamente mulheres e crianças. Apesar de haver muitos meninos e meninas e
até a Cinderela, dos seus sonhos, as brincadeiras eram tristes por irem ao
encontro do desconhecido.
O
único momento mais alegre na viagem foi quando atravessaram o Equador. Houve
uma festa e pediram autorização a Neptuno para atravessar aquela linha que
ninguém viu, mas que dividia o mundo. Parecia o Carnaval sobre a água, onde até
os golfinhos dançaram com saltos e cambalhotas. Depois voltou a tristeza, só
quebrada quando viam terra ao longe e tentavam adivinhar o seu nome, que país
seria aquele, e quanto tempo faltaria para chegarem às suas novas casas.
A
viagem terminou num dia de manhã quando acordaram e se aperceberam que estavam
a entrar num rio. Havia por todo o barco uma azáfama a pôr tudo o que traziam
nas malas e nos sacos com que tinham partido, duas semanas antes.
O
barco encostou num local onde as pessoas espalhadas no cais vestiam mais peças
de roupa, muito diferentes das que conheciam e de cores escuras. Algumas delas
tinham na mão papéis com nomes escritos, querendo assim identificar mais
depressa, por quem esperavam e que por vezes nem conheciam. Outras, nas folhas
brancas que levantavam acima das cabeças escreveram Braga, Viseu, Chaves ou
Évora, havendo algumas com nomes elegíveis. Aqui e ali viam-se vários carros
azuis a dizer “Polícia” e mais afastados alguns carros pretos de tejadilho
verde.
Quando
finalmente poderam sair do barco criaram-se situações diversas. Uns, apesar de
saberem que não tinham ninguém à sua espera olhavam para todo o lado perdidos
procurando um olhar amigo que os reconfortasse à chegada a uma terra
desconhecida. Alguns dos passageiros sabiam que alguém os esperava mas não os
encontravam porque o afastamento de bastantes anos tinham originado alterações
físicas que não os permitia reconhecer.
Houve
muitas pessoas que se viram pela primeira vez. Apesar de terem laços familiares,
havia novas gerações que não se conheciam.
Foi
o caso do João e da irmã. Ainda no cais, conheceram uns primos que se tinham
acabado de casar e em que ela transportava na barriga, mais um primo ou prima,
que nasceria dentro de meses. Foram recebidos de braços abertos pelos tios que
tinham vindo do sul só para os reverem e desejar-lhes boas-vindas.
Estavam
também umas pessoas de mais idade que com um ar seco e frio abraçaram de fugida
a mãe de João e fizeram uma festa na cabeça da irmã. Eram os avós, em casa de
quem iriam morar temporariamente, até poderem ter casa própria.
Estes
avós vinham substituir os que tinham ficado para trás, lá longe, e eram tão
diferentes no afecto e carinho que expressavam.
Como
tinham viajado inesperadamente, foram com as poucas malas que traziam para a
casa enorme dos avós do João. Era estranho ir viver para um andar, num prédio
de vários pisos, sem jardim, donde não se via nenhuma praia e onde ao abrir a
janela recebiam um clima tão diferente daquele a que estavam habituados. A
agravar tudo isto o pai só iria chegar dois meses depois, após tentar minorar
os prejuízos de uma partida tão apressada da família com um mínimo de
pertences.
Para
o João, com os seus poucos anos foi uma grande mudança de vida. Mas para a
irmã, no auge da sua juventude foi muito pior. Separara-se de um primeiro
namorado que tinha e de quem gostava apaixonadamente. Tiveram os dois que
conhecer um novo mundo. Passaram a ter frio numa estação a que chamavam Inverno
e no dia de Natal não podiam ir à praia como sempre faziam anteriormente. As
casas eram mais altas com muita gente lá dentro que por vezes nem se conheciam.
A vida era toda mais a correr, sem se perceber bem para quê ou para onde. As
pessoas eram menos calorosas, menos calmas, menos fraternas e conviviam pouco.
Todos
os companheiros de viagem no barco tentavam reencontrar-se como forma de
reviver um ambiente e um passado que tinham deixado para trás e que tinham
dificuldade em esquecer e resistiam a apagar da memória.
Mas
esses tempos nunca mais voltariam. Passado uns meses tiveram de aceitar que
aquelas eram as suas novas vidas.
O
mesmo teve de fazer Ofélia, a dedicada empregada que tinha ido para África com
os pais de João e que tinha voltado no mesmo barco que a família regressou. Voltou
para a sua antiga terra, que tinha deixado por um desgosto de amor muitos anos
antes, perdendo o contacto com os seus meninos que ajudou a criar e que
substituíram os filhos que nunca teve.
A
mãe de João, Rosa, continuou a cuidar dos outros, só que antes era professora
primária e tratava do ensino e da formação de crianças e passou a tentar dar
uma vida melhor como enfermeira pediátrica, muitas vezes esquecendo-se de si
própria.
O
pai de João, Ricardo, que também tinha sido professor, passou a trabalhar numa
fábrica de tecidos e fez por ultrapassar a sua frustração por não ter acabado o
curso de medicina, que era a sua vocação, e pela segunda vez deixar os sonhos
para trás, para bem da família.
A
irmã de João, Luísa, mais tarde, abandonou a ideia de ser advogada e passou a
dedicar-se às artes, em grande parte por influência das notícias que chegavam
da Europa.
O
João teve que reaprender nomes de rios, de cidades, de linhas férreas e até de
estações do ano, apagando o cacimbo.
A
família do João foi recomposta com o aparecimento de novos avós, tios e primos.
A mãe tentava reaproximar-se de amigos da experiência africana, mas era sempre
contrariada pelo pai que queria fechar aquela porta para sempre. Foi sempre uma
coisa que eles nunca conseguiram resolver bem nas suas cabeças. Mas para os
dois filhos foi muito mais fácil pois as memórias eram bastante mais pequenas e
a adaptação foi mais simples.
A
irmã passou a ter novas e fulgurantes paixões e amizades profundas que a
acompanharam para sempre e que tornaram a sua vida intensa.
O
João apaixonou-se pela primeira vez quer por causas que o entusiasmavam, quer
por novas Cinderelas, e apesar de tímido e introvertido, tornou-se num
pinga-amor, para compensar o pouco afecto que teve em casa e que tinha perdido
quando a empregada que o criara, ficou longe dele para sempre.
Muitos
anos mais tarde, o amor da sua vida comentou com alguma razão, que se notava
que na infância do João lhe tinham faltado mimos, provavelmente porque os pais
tiveram uma vida muito dedicada aos filhos dos outros e sempre com falta de
tempo para os que lhe estavam mais chegados.
Mas
quer o João quer a irmã compensaram essas faltas de afecto com o empenho no
trabalho e nos amigos e foram sempre sendo cada um ao seu modo apaixonado e
feliz, com alguns períodos piores, mas que eram largamente compensados pelas
suas realizações pessoais.
A
irmã num período em que o seu “novo” país parecia não andar para a frente,
partiu para outras paragens onde procurou libertar-se de um país fechado e
obscuro e abrir novos horizontes.
O
João ficou com menos cumplicidade e companheirismo mas compreendeu a
necessidade que a irmã tinha de partir. Curiosidade que também teve, mais tarde
na adolescência, quando foi ver novas vidas e culturas quando, com os seus dois
melhores amigos. Viajou com uma mochila às costas, pela Europa fora, com um InterRail no bolso.
Após
essa aventura de Verão por novos mundos e em que o João transformou a
companheira de viagem na sua primeira namorada, passaram ambos a frequentar uma
praia da outra margem do rio que divide a cidade. Era um local isolado e
sossegado onde podiam explorar melhor os seus sentimentos recíprocos.
Curiosamente
é a praia que ainda hoje ele frequenta e por onde viu passar uma ou duas
gerações.
Todas
as épocas balneares é um local de reencontro com várias personagens.
A
Joana que conhece desde que era um bebé de colo, até hoje que é uma jovem
senhora. Já não é a menina traquina que brincava sempre com os outros meninos,
por sentir a falta de um irmão que nunca chegou a ter por a mãe se ter
divorciado ainda durante a gravidez. A jovem seguiu as pisadas da mãe e
continuou o sonho dela e na praia brinda todos com uma bela exibição de
cambalhotas, flics-flacs, saltos mortais e outras graciosas acrobacias. Tem um
corpo esguio que irá preservar se continuar nos seus exercícios e se não se
desleixar pela intensa vida profissional e familiar, que não lhe permitirá
olhar pelo seu bem-estar. A ginasta intervala os banhos de mar, sempre
acompanhada pela mãe, e as suas demonstrações de agilidade, com leituras muito
atentas de livros policiais.
Os
Melgas que falam muito alto e que toda a praia percebe que são professores
pelas conversas que têm e pelo ar autoritário e assertivo com que falam
constantemente. Começam a época de banhos, cada um com o seu chapéu de palha,
qual deles mais queimado, gasto e a desfazer-se, a falar da desgraça de alunos
que tiveram ele a matemática e ela a português. Como é possível os jovens
entenderem o que é dois e dois, se não percebem português e falam como se
estivessem a enviar sms’s. E o que é isso das chamadas redes sociais se eles
não falam, nem convivem pessoalmente com o amigo que está mesmo ao seu lado,
mas só comunicam através das suas máquinas viciantes. Até chamam ao seu tipo de
comportamento: “estar a socializar”. Cada ano que passa, têm mais queixas do(a)
ministro(a) da educação que dizem ser um(a) burocrata que quer quantificar o
impossível esquecendo o empenho e dedicação dos professores à nobre causa da
educação e à formação das novas gerações.
O
Cromo que é um personagem que fascina e espanta toda a vizinhança, pelo seu
comportamento. Estende a toalha sempre na mesma posição e sacode dela a areia
com um piparote certeiro, como se estivesse a jogar aos berlindes. De seu nome
Alcides Mangas, nome pouco sonante, mas que insiste em dizê-lo, alto e em bom
som, sempre que atende o telemóvel colocado a 5 cm da parte de cima da toalha.
Também geometricamente pousado, e também do lado direito, está o creme solar
igualmente a 5 cm da parte de baixo da toalha com cores berrantes comprada na
feira ou eventualmente na loja dos chineses. Do lado esquerdo e à mesma
distância dos limites tem um Iphone, onde antigamente punha um rádio a pilhas.
Mais perto dos pés, está uma garrafa de água de plástico, da qual bebe de cada
vez dois goles de uma água amarelada. A toalha está estendida no sentido oeste
para este e a utilização da água, creme, telemóvel e fones segue uma sequência
sempre igual e doentia. Por vezes, ouve-se um bzzzzz, e aparece uma vespa que o
distrai e lhe baralha a sequência das manias e perturba-o de tal modo que vai à
água para se acalmar. Quando volta, refrescado, retoma a sequência das
obsessões, o que o descontrai de imediato.
O
Banheiro passou a Nadador-Salvador e parece estar sempre com sono. Com uma
bóia, por perto e um apito pendurado ao peito, tinha sempre disponibilidade
para conversar com os pescadores que com as suas canas e os seus barcos puxavam
para terra o peixe que muitas vezes lhe servia de refeição. Foi substituído por
uma jovem com uma prancha de surf e uma mota de água. Hoje os barcos de pesca
só passam ao largo e os pescadores de terra desapareceram para outras paragens
e portos longínquos.
A
praia é invadida por milhares de crianças de todas as idades que nas férias vêm
aproveitar a oportunidade que muitos dos seus pais não tiveram de conhecer e se
refrescarem no mar. Como filas de formigas, organizadamente, dirigem-se à água,
sempre acompanhadas pelos seus protectores. Jogam à bola com os educadores,
dispõem as toalhas em círculo, ou em filas paralelas, onde comem a sandes e
bebem os sumos que trouxeram nas mochilas.
A
Barbie, aquela loura platinada e esquelética, que acompanhada de um senhor com
aspecto de ter pelo menos mais 30 anos de idade que poderia ser marido mas
parecia pai, estavam logo à entrada da praia. Ele debaixo de um guarda-sol de
cores espampanantes e ela na torreira do sol, com o seu biquíni minúsculo de
cor a condizer, mas a mostrar as operações plásticas de recauchutagem já
feitas, toda besuntada de creme e a folhear, por detrás dos seus óculos de
marca, revistas cor-de-rosa e de telenovelas.
O
Estrumpfe agora renomeado Smurf, aquele velhote com uma barriga proeminente que
esconde as partes baixas e frequenta a zona de nudismo que hoje é de naturismo,
está na praia ao lado. Sempre se apresentou como veio ao mundo, apesar da sua
figura arredondada, pesada e disforme mas que nunca se incomodou com os voyeurs de todo o tipo que espreitam nas
dunas e que são qualquer coisa não assumida.
O
Arrumador do parque de estacionamento que cumprimenta amigavelmente todos os
que chegam, apesar dos óculos com lentes fundo de garrafa só lhe permitirem ver
uns vultos. Com um chapéu com uma chapa amarela tão gasta onde já não se
consegue ler nada, tenta arrumar os carros que vão chegando como se fosse a
espinha de um peixe. É uma testemunha de pelo menos três gerações de
frequentadores daquela praia e ainda hoje conserva o mesmo guarda-sol, mesinha
e cadeira na entrada da areia.
O
Coronel e sua família. Todos de pele escurecida, envelhecida e enrugada, dadas
as longas horas que se estendem à torreira do sol. Chegam com uma mala
frigorífica, comprada num supermercado, cheia de sandes e garrafas de água
gelada, que poem debaixo de um guarda-sol onde nunca se resguardam. Pai e filha
baixos, de pernas arqueadas e caras fechadas com rugas vincadas, aparentam ter
mais anos do que realmente têm. Todos têm um corpo reflexo de uma ginástica em
excesso de que tapam algumas partes com fatos de banho com pouco tecido. A
mulher, com as mesmas características físicas, praticamente não fala durante
todo o dia, limitando-se raramente a acompanhar um e outro nas idas ao banho de
mar.
Os
reformados da Graça, aquele grupo da terceira idade, que aproveitando a
oportunidade dada pela Junta de Freguesia, se deslocam à praia por vezes
acompanhados, ou melhor acompanhadas dado serem quase todas mulheres, pelos
netos, em que os pais estão a trabalhar e depois de escolas e ATL’s fecharem,
não têm sítio para os deixar durante o dia. São comandados pela voz de uma
idosa com voz de estridente de sargento que ordena a partida às 12 horas em
ponto, apesar de ser sempre a última a chegar ao autocarro. No último dia de
praia organizam um piquenique farta brutos em que cada uma tenta mostrar ao
grupo os seus melhores fritos e doces que lhes provocam todas as maleitas de
que falaram em todos os dias de convívio.
Mas
o João conheceu também um casal, desde o primeiro dia que frequenta aquela
praia e que ao fim de 30 anos mantêm um ar de cumplicidade e apaixonado como no
início. E isso fá-lo pensar como gostaria de conhecê-los melhor para saber qual
a receita para esse encantamento permanente. Hoje, timidamente, já lhes diz
bom-dia ou boa-tarde, mas nunca ganhou coragem para se aproximar deles e
estabelecer uma relação mais próxima que lhe permitisse partilhar as alegrias
de serem vizinhos sazonais desde longa data.
Certo
dia, em que a praia tinha uma enchente, dado o óptimo clima que se verificava,
após uma série longa de dias frios, o João foi para um local menos habitual e,
sem querer, ouviu uma conversa entre dois casais com filhos que entretanto
embirravam amigavelmente uns com os outros junto à água.
Nesse
diálogo, faziam uma descrição do percurso do tal casal, com uma receita de vida
misteriosa, a uma outra pessoa das suas amizades que entretanto chegara. Como
primeira curiosidade ficou a saber que as crianças, netos desses casais tinham
todos seis avós, dado terem tido todos dois casamentos e ambos terem
constituído segundos casais. Todos os seis avós davam-se bem e comemoravam em
conjunto os aniversários dos mais pequenos, numa relação franca e aberta que
espantava quem estava de fora. O casal que intrigava o João era portanto o
segundo casamento da Maria e do Francisco em que os filhos eram dela mas que
quer eles quer os netos o tratavam como se fosse o pai e o avô genético.
O
Francisco, que também tinha vindo do mesmo país que o João teve um percurso
semelhante ao seu. Veio embora de África mais ao menos na mesma altura e, tal
como ele, não guardava rancor nem mágoa sobre o que se passara no país onde
nascera e que precipitara a sua partida inesperada.
Também
ele gostava de ter tido filhos mas tal nunca se proporcionara e passou para os
seus enteados todo o amor e afecto que lhes estava destinado. Tratou-os sempre
como se fossem seus filhos e esse relacionamento franco fez com que ainda hoje
ele tenha uma paz que demonstra na sua postura, estado de espírito e modo de
vida. Mas esse comportamento também teve a ver com o facto de ter encontrado na
sua mulher uma alma gémea que se manifesta em emoções comuns e partilhadas, em
projectos e sonhos conjuntos, em apoio mútuo nas horas mais difíceis que já
atravessaram.
O
João revê-se naquele casal pois parece-lhe um reflexo da sua realidade.
Normalmente,
a vida de uma pessoa cruza-se com outras em que há pontos em comum quer de
interesses pessoais, de perspectivas de vida, ou de sentimentos. As amizades
aproximam-se e afastam-se no tempo, e, por vezes, quando se reencontram mais
tarde parece que já nada tem a dizer pois entretanto passaram por vivências que
os levaram por caminhos divergentes. É o contrário do que acontece noutros
momentos em que se reencontra alguém que muito se estima e que já não revemos há
muito tempo e queremos apressadamente por a conversa em dia, como se fosse possível
recuperar o tempo perdido com o afastamento.
Ambos,
João e Francisco, se tornaram padrinhos à distância de jovens africanos,
através de uma ONG que conheceram a partir de uma reportagem na televisão,
tentando assim colmatar o facto de não terem deixado sementes naquele
continente. É também um modo de não perder o cordão umbilical que o pai sempre
quis cortar mas que a mãe tentou preservar a todo custo. Enviavam roupa, lápis,
cadernos e outros bens essenciais para um mínimo de qualidade de vida daquelas
crianças que não tiveram a mesma sorte na vida que eles. Faziam isso sem se
vangloriarem, pois estava no modo de ver e de encarar a vida que lhes tinha
dado o país onde nasceram que tem aquela terra ocre, o pôr-do-sol inesquecível
na baía, as chuvadas torrenciais no pino do calor, o tempo para tudo…
Os
dois, João e Francisco, tiveram a oportunidade profissional de regressarem às
origens, cada um dando um contributo com os seus conhecimentos para enriquecer
aquele povo que tinha sido tão maltratado, mas uma guerra inexplicável de
interesses tribais e de ganância pessoal impossibilitou no último momento a sua
concretização. Talvez tenha sido melhor assim pois ficaram sempre com as
imagens que tinham na memória daquele paraíso vivido na infância, e não viram a
destruição material e física que houve depois da sua partida.
Numa
conversa ouvida por acaso, o João ficou a saber que têm pontos em comum pois
continuaram o caminho dos pais. O João é professor do ensino básico e o
Francisco, também o queria ser e acabou por ser enfermeiro num hospital pediátrico
que recebe muitas crianças de origem africana.
Entretanto eis que chega ao mesmo grupo um jovem casal que entusiasmado conta que tinham regressado de uma viagem de trabalho de seis meses naquele paraíso africano e que deveriam convencer o pai Francisco a voltar para ver como diferente e moderno está o país que entretanto se tornou independente, moderno e em fulgurante progresso.
Quem
primeiro ficou entusiasmado foi o João que por estar muito perto ouviu a
conversa e naquele momento decidiu ir tratar do passaporte, do visto e da
viagem de avião, apesar de não gostar de andar tanto tempo no ar, mas que
desejava concretizar um sonho adormecido.
Quando
o João estava a imaginar a viagem não reparou naquela senhora de idade que
chegou com a Maria e o Francisco. Era uma figura curvada pelos anos e que tinha
todo o seu carinho expresso nos bonitos olhos negros e cabelos brancos cheios
de caracóis. Perguntou de rompante, na sua voz doce, pelos netos dos senhores
pois já não os via há bastante tempo e queria ver como eles estavam crescidos.
Eles vieram a correr e aos saltos beijar e festejar o reencontro com aquela
outra avó adoptiva de que todos falavam e gostavam tanto.
De
repente o João vira a cara e reconhece naquela velhinha a Ofélia, a sua querida
empregada que já não via desde o dia em que se despedira dela no cais no dia da
chegada de África. Quando os olhos se cruzaram agarram-se um ao outro e ela não
parava de chorar de alegria e de dizer: “olha o meu Menino Joãozinho…”. Os seus
caminhos perderam-se e nunca mais souberam um do outro durante todos os anos
decorridos.
Enquanto
reviviam histórias passadas, Francisco aproximou-se e disse que algumas
daquelas histórias também lhe eram familiares e acabaram por concluir que ele e
João tinham estado ao mesmo tempo, nos mesmos locais, mas que nunca se tinham
conhecido. Moraram em casas separadas por algumas ruas, andaram em escolas
vizinhas e vieram no mesmo barco, o Uíge, só que em viagens diferentes.
Acabaram
por concluir que os pais tinham uns amigos comuns, apesar dos pais terem muito
poucos amigos. Eram aqueles senhores que trabalhavam na rádio e que moravam
perto do cinema ao ar livre e que foram presos por defenderem a independência.
Naquele
momento ficou combinado, que o João, na viagem ia ter a companhia do Francisco
e da Maria e ainda da Ofélia que ficou tão entusiasmada que até rejuvenesceu.
O João Menino concluiu que este mundo é uma aldeia grande em que todos se
reconhecem mesmo quando não se conhecem, e em que as vidas se cruzam e se
descruzam num paralelismo de histórias e de vivências.
Luísa
é a irmã de João. Oito anos mais velha, também nasceu no mesmo país africano.
Foi gerada numa época em que os pais não se estavam a dar bem e pensavam
separar-se por o pai ter descoberto umas cartas de amor que um professor da
mulher lhe escrevia desde que fora sua aluna, já haviam passado doze anos.
Percebeu
que o professor era seu confidente e estava a par de todos os desentendimentos,
mal entendidos e desamores que tinham tido desde o casamento. Foram para aquele
país, por sugestão dela, para esquecer o amor supostamente adormecido, mas
apesar da distância e dificuldade de comunicações tal não veio acontecer, antes
pelo contrário.
Os
pais de Luísa tinham duas escolas, uma infantil e outra de ensino básico, que
eram pela sua inovação nos métodos de ensino e de aprendizagem uma diferença
positiva num país ainda tão desfasado da realidade. Eram muito consideradas na
cidade por ser umas das melhores escolas pela exigência e não facilitismo com
que os alunos eram ensinados, formados e educados.
Tinham,
quer no local de trabalho, quer em casa um muito bom relacionamento com todos
que trabalhavam com eles, independentemente das suas origens.
Inadvertidamente
não se aperceberam que Luísa quando tinha quase seis anos fora violada de noite
por um dos empregados de quem todos gostavam mais. A mãe não identificou de
imediato o acto violento e achou estranho, apesar de não lhe dedicarem muito
tempo, por estarem quase sempre ocupados com os filhos dos outros na escola,
que a filha a evitava ou mesmo lhe fugia quando ela se chegava perto. Luísa
achava que a mãe não tinha sido capaz de a defender, da agressão de que tinha
sido vítima, conforme achava que era sua obrigação.
Quando
finalmente a Mãe de Luísa, descobriu passado uns dias, o que se tinha passado,
e temendo a reacção violenta do marido, recomendou a partida imediata do
violador, e só depois pôs o marido a par do que tinha acontecido.
A
decisão que tomaram foi enviar Luísa para a metrópole onde viviam os avós
paternos, de forma a tentar afastá-la da memória nefasta do que tinha sido vítima.
Foi um segredo bem guardado de todos, pois o que foi dito é que ela se ia embora
porque o clima africano não lhe era propício e estava a perder muito peso,
parecendo anoréctica.
A
solução não foi a melhor porque Luísa, sentiu-se completamente desambientada
para onde foi enviada. Nunca tinha conhecido o ramo da família com que agora
estava a viver. A situação agravou-se com a chegada do frio a que não estava
habituada. Quando raramente falava pelo telefone com os pais implorava, entre
soluços de choro, para voltar. Tal veio acontecer passados poucos meses, não
tendo completado um ano de ausência de casa.
Quando
regressou as zangas entre os pais continuavam, talvez ainda com mais
intensidade. Tinham discussões intermináveis em que Luísa fugia para o quarto,
atirava-se para cima da cama, tapava os ouvidos com as mãos com toda a força
que podia e escondia-se debaixo da almofada chorando sem parar.
Era
um martírio continuar a assistir àquelas desavenças. A agravar achava que os
pais não tinham cumprido bem a sua função protectora quando tinha sido violada.
Convenceu-os que queria ter um irmão. Pensou que esse sim ia protegê-la quando
ela precisasse novamente. Quando nasceu o João, Luísa estranhou pois ela era
muito morena e o irmão era branco de louro. As feições eram as da mãe e da avó
e até tinha duas covinhas ao lado da boca como elas. Luísa era mais morena e
escura e parecida com o pai, até assemelhando ter alguns traços de origem
indiana, como a avó que conhecera quando estivera na metrópole.
As
diferenças de oito anos que tinha do irmão apesar de se notar mais durante os
primeiros anos de vida, com o passar do tempo foram-se esbatendo e
aproximando-se cada vez mais um do outro.
A
partir da idade adulta de ambos uma situação que sempre se manteve foi que,
apesar de por vezes morarem até muito perto um do outro, raramente se
encontravam. Mas sempre que por alguma razão um dos dois tinha alguma situação
mais complicada de gerir, na sua vida pessoal ou profissional, aproximavam-se
mais um do outro e apoiavam-se mutuamente, até a situação estar ultrapassada.
Luísa
desde pequena, incutido pela empregada Ofélia, de origem transmontana, tinha
sido educada sempre com o espírito e o sentido de justiça. Para ela tudo na
vida era uma questão de equilíbrio e de valores positivos e negativos. Desde
criança era muito pragmática e só existiam os bons e os maus. Não havia as
pessoas assim-assim. Todos tinham de estar de algum lado da barreira.
Começou
desde pequena, com os bocados de tecido que sobravam da costureira que ia lá a
casa, a fazer os próprios fatos das suas bonecas. Não que gostasse muito de
brincar com bonecas, porque tinha qualquer coisa de maria-rapaz, até o apelido
era Menino. Fascinava-a imaginar os fatos, desenhá-los num molde em papel,
cortar os tecidos e cozê-los. Chegou até a fazer, na altura do nascimento do
irmão, um bibe com uma tira no peito, de bonecos bordados a azul. A certa
altura da sua juventude começou a fazer calças, blusas, túnicas e até fatos de
banho para si própria.
Por
o seu corpo ser elegante e esbelto e encantada por um espectáculo de ballet que
tinha visto em pequena, ainda de tenra idade começou a dançar. Dançou enquanto
o corpo lhe deixou até lhe aparecerem dores insuportáveis na coluna e nas
pernas, provocadas pela dança em pontas. Naquela época praticamente só havia
dança clássica e a chamada dança moderna só apareceria quando ela já tinha
abandonado o ballet. Senão teria sido o caminho da sua preferência.
Esse
abandono da dança coincidiu com o momento em que abruptamente teve de partir de
África e abandonar os amigos, os colegas e o namorado, de quem gostava tanto.
Foi uma mudança drástica de vivências e que a levou algum tempo a adaptar-se.
Com
a chegada ao novo continente, onde anteriormente já tinha estado em casa dos
avós, tentou reencontrar amigos que também teriam vindo da mesma cidade, mas a
procura foi infrutífera, porque tinham ido todos para a mais diferentes vilas,
aldeias e cidades, perdendo o rasto deles todos. Sentiu-se ainda mais perdida.
Os
pais tinham agora a preocupação de encontrarem empregos e continuavam a não dar
muita atenção aos filhos. A mãe começou a trabalhar primeiro que o pai, o que
gerou mais alguns atritos no casal. Quando o pai se empregou, numa actividade
completamente nova da sua formação profissional, as coisas até acalmaram entre
eles e a família encontrou alguma estabilidade que permitiu irem viver para uma
casa só deles.
Tinha
sido para esta casa, de onde agora saiam, que Luísa tinha vindo uns anos antes
para apagar a má memória de criança. A nova estadia ali, só teve de bom porque
desenvolveu uma amizade com a avó que não tinha tido na anterior estadia. Já o
irmão, nunca foi feliz naquela casa. Apesar do espaço ser imenso, e ele ser
criança ainda, o seu espaço para brincar era muito limitado e sempre com
chamadas de atenção para não estragues isto, cuidado com aquilo. Teve uma
pequena vingança e no dia em que todos se vieram embora, pegou num pau e bateu
com ele em todas as sete arcas que estavam no corredor imenso.
O
avô tomou como tarefa, quando os dois netos chegaram a sua casa, dar a conhecer
bem a sua nova cidade. Pegou neles e levou-os de autocarro e eléctrico a tudo
quanto era sítio. Jardins, zoo, lago, museus, palácios, castelo, pastéis de
Belém. Só faltou mesmo a Feira Popular, mas o avô não era uma pessoa muito dada
a grandes diversões. Mostrou-lhes todos os locais que mais tarde, com a chegada
de turistas em grandes quantidades, se tornaram pontos de interesse.
Ao fim de um ano, a família, ainda em fase de
integração, foi viver para uma casa térrea e pequena numa zona de praia que
tinha uma semelhança mínima com o país que tinham abandonado. A proximidade do
mar era importante para todos, pois davam-lhe uma sensação de liberdade a que
se tinham habituado e que queriam reviver e preservar.
Os
jovens irmãos continuaram a estudar. João ainda estava nos primeiros anos do
liceu. Luísa foi estudar direito, a que não foi alheio o sentimento de justiça
que Ofélia lhe tinha incutido. No primeiro ano conheceu um rapaz que lhe fez
lembrar de beleza e de feitio, o namorado que tinha deixado longe. Mas não há
amor como o primeiro e a relação não durou muito tempo.
Com
o passar do tempo começou a ver que o curso que frequentava, não tinha nenhuma
afinidade com o sentimento de justiça que defendia. A mesma lei servia para os
dois lados da balança e não se estava a ver a defender pessoas e causas que mexiam
com a sua maneira de ser, incomodando-a. Começou a desencantar-se com o curso e
só se arrastou até ao final dele por ver o esforço de economias que os pais faziam
para que ela se mantivesse num curso superior.
Mas
após acabá-lo, nas férias, antes de começar o estágio obrigatório num
escritório de advogados do tio, conheceu um alemão por quem teve uma grande
paixão. Ele só falava a sua língua materna e mal inglês e a comunicação era
algo difícil. O pai combateu sempre o namoro e tentava limitar as saídas de
ambos, por dizer que aquilo de um alemão ter o cabelo à escovinha e quando
cumprimentava as pessoas bater os calcanhares como faziam os nazis, era uma
coisa que ele nunca poderia aceitar. Com a partida para a terra de origem o
namoro acabou por se esfumar. No dia em que Luísa o acompanhou ao aeroporto
cruzou-se com um charmoso francês que estava a chegar. Teria mais quinze anos
que ela mas foi uma troca de olhares difícil de esquecer.
Passado
um mês e quase no final das férias Luísa vê o francês na mesma praia que frequentava.
Vestia um biquíni branco bordado à mão, feito por ela. O senhor aproximou-se
dela perguntando-lhe onde tinha arranjado tão bela indumentária. Respondeu que
tinha sido feito por ela e que normalmente toda a roupa que usava era de seu
fabrico. Ele disse-lhe que era desenhador de moda e que trabalhava para uma das
maiores marcas francesas de roupa pronta a vestir. Gerou-se ali naquele momento
uma empatia de interesses e as trocas de olhares voltaram, agora mais profundas
e intensas apercebendo-se desde aquele momento que tinham um futuro comum a
viver.
Com
o fim das férias e a aproximação do início da actividade na advocacia, Luísa
via-se estar prestes a abraçar um futuro indesejado, oposto àquela oferta do
francês para partir com ele e ir trabalhar na fábrica de têxteis a desenhar padrões
de tecidos. Não disse nada aos pais, partindo às escondidas, para o estrangeiro
e só dizendo onde estava após chegar ao destino. Só o tinha dado a entender ao
irmão por meias palavras. A sua afinidade com a cultura francófona e o perfeito
conhecimento da língua deram-lhe uma rápida e fácil integração. Chegava ao
mundo que conhecia das revistas francesas de moda que tão avidamente folheava.
Os
pais tiveram uma reacção diferente. Enquanto a mãe se foi muito abaixo
psicologicamente percebendo que nunca tinha dado o devido carinho e protecção à
filha, o pai achou que o futuro estava fora do país e que mais facilmente no
estrangeiro poderia desenvolver uma actividade de que tanto gostava.
O
irmão teve a sua primeira namorada naquele ano e teve pena de não ter perto de
si a irmã para partilhar essa nova experiência. Foram meses difíceis, e que
custaram a passar até ao final do ano, principalmente à mãe, quando os três a
foram visitar. Só quando lá chegaram é que souberam que agora Luísa estava a
viver com o francês numa casa-estúdio de artista num bairro típico.
Não
se sabendo bem porquê Luísa tinha tido sempre, desde muito nova, uma relação
muito difícil e conflituosa com o pai, e talvez por isso, e para não se
arreliar, muitas vezes não partilhava com ele certas situações da sua vida, tendo
só essa cumplicidade com a mãe. Nem mesmo com o irmão que tinha sido tão
desejado, por vezes tal acontecia.
Esteve
vários anos como emigrante a trabalhar fora, mas quando a relação amorosa francesa
terminou, porque cada um queria seguir uma via profissional diferente, era
difícil continuarem a trabalhar no mesmo local e optou por voltar ao seu país.
O
problema no regresso eram dois.
O
primeiro era não voltar para casa dos pais e encontrar a sua própria casa a ter
uma vida independente, como aquela a que se tinha habituado no estrangeiro.
Transformou numa casa uma antiga fábrica onde a luz entrava com uma claridade e
luminosidade característica da cidade branca por uma clarabóia imensa que se
estendia por todo o tecto. Parte da casa passou também a ser o seu local de
trabalho.
A
segunda dificuldade no retorno foi, dado a grande atraso que as fábricas de
têxteis ainda tinham no país, essencialmente por usarem métodos antiquados,
tentar encontrar um local onde lhe fosse permitido aproveitar os conhecimentos
que tinha adquirido.
Começou
por criar os padrões dos tecidos conforme as modas ditavam no estrangeiro, o
que era muito avançado para a época. Depois acabou por desenhar os cortes dos
tecidos e assim conjugar a beleza das cores com os seus feitios. A roupa do
mesmo tipo que se via no país era só a que uns poucos afortunados podiam trazer
de fora, nas suas viagens de lazer.
Mas
Luísa era uma insatisfeita e uma perfeccionista por natureza. Aquilo ainda não
a satisfazia por completo. Começou a ver onde o seu dom poderia ainda ser
melhor aplicado.
Descobriu
que os espectáculos de dança, teatro e ópera eram um caminho possível.
Preparou-se. Estudou história do traje, aprendeu e conheceu com a mãe os nomes
dos tecidos (alpaca, angorá, mohair, seda, algodão, linho, viscose, piquet,
tafetá, cetim, chita, organdi, lona e veludo) e técnicas de costura (ponto pé
de flor, picado, de luva, ziguezague, de casamento, alinhavar, cerzir, chulear)
e avançou com uma proposta para um teatro nacional. Como o orçamento era muito
baixo daquela peça que estreava daí a três meses, e como era principiante,
iriam pagar pouco, mas teve a sorte de ser escolhida para o trabalho. Foi um
espectáculo que deslumbrou pela inovação de aplicação dos mais diversos tecidos
e feitios dos figurinos. Chamou logo a atenção para si, ela que era de uma
timidez enorme e de fugir sempre da exposição.
Mas
dado ser uma actividade de ocupação incerta, começou também a dar aulas numa
escola onde formavam o que viriam a ser os seus futuros colegas de actividade.
Gostava de transmitir aos mais novos todos os conhecimentos que tinha adquirido
dos anos que já levava a fazer o que gostava. Incentivava-os a inovar, a
arriscar, a experimentar, a serem diferentes. Apercebia-se desde o início quais
os alunos que iriam singrar e ter futuro como aderecistas, figurinistas ou
cenógrafos. Ensinava-os como trabalhar com as restantes equipas de cada
espectáculo como maestros, encenadores, carpinteiros, serralheiros,
costureiras, iluminadores. Para tal tinham que saber os nomes dos materiais,
das técnicas e nomes específicos dentro de cada área. Não tinha receio que eles
lhe fizessem sombra, quando fossem profissionais. Dizia-lhes que hoje ela tinha
aquelas características que tentava despertar-lhes, mas nada garantia que no
futuro fosse assim. A inspiração e a capacidade de a transpor para a realidade
poderiam não durar eternamente.
Neste
mesmo período, a nível pessoal, as coisas também corriam de feição. Luisa, sempre
achou que as duas metades que completam a vida de uma pessoa, a pessoal e a
profissional, andavam sempre em paralelo. Uma acompanhava a outra.
Mas
fruto da inveja de colegas incapazes de inovar de espectáculo para espectáculo,
o seu trabalho começou a ser denegrido por quem achava que ela tinha vindo
quebrar o status quo do meio. Não eram capazes de aceitar uma lufada de ar
fresco que tinha chegado a um grupo de colegas conservadores e corporativos.
Sentiam os seus interesses ameaçados. Durante um largo período de tempo não
teve nenhum novo trabalho para fazer. Restavam-lhe as aulas, ainda por cima num
local onde também vegetavam alguns dos seus colegas profissionais.
Este
momento coincidiu também com o nascimento de uma filha que apesar de ser
desejada, veio ao mundo com uma malformação genética. Era mesmo o começo de uma
nova má fase na sua vida. Tinha uma doença rara e praticamente desconhecida e
empenhou-se fortemente a descobrir qualquer possibilidade de melhoria da sua
qualidade de vida. Consegui-o descobrir num país asiático onde as medicinas
orientais tinham chegado a uma solução para a doença minorando-a e facilitando
a vida a todos os seus portadores.
A
chegada da primeira neta para os avós, foi muito complicada. Queriam compensar nos
netos, que provavelmente iriam ter, a pouca dedicação e carinho que tinham
dedicado aos filhos e desafortunadamente tinham recebido uma neta com alguns
problemas de saúde. Tiveram de esquecê-lo rapidamente porque tiveram de dar um
grande apoio à filha. Felizmente o problema ficou bem encaminhado e poderam
saborear e acompanhar o crescimento da mais pequena da família.
Luísa
aproveitou esta fase negativa, em que mais uma vez se aproximou mais do irmão,
para partilhar com ele o segredo do que lhe tinha acontecido em criança, quando
quase quarenta anos antes tinha sido violada e ido para casa dos avós. Contou-lhe
como tinha pedido aos pais, com muita insistência, quando voltara, que queria
ter um irmão, para a proteger. Só naquele momento João se apercebeu da sua
verdadeira importância na vida de Luísa, e que se calhar nunca tinha
correspondido completamente ao ansiado pela irmã.
Entretanto
Luísa regressou a uma nova fase positiva. A filha entrou para o infantário e
era uma menina muito alegre e comunicativa, não sendo nada reservada como a
mãe. Era uma brincalhona e sempre bem-disposta e pronta para ajudar, vindo a
revelar-se mais tarde uma óptima aluna.
As
encomendas dos trabalhos de figurinos e cenografia voltaram em tal quantidade
que tinha de rejeitar alguns por se sobreporem no tempo. A filha, já mais
crescida, ajudava-a em casa a fazer as maquetas e a desenhar os fatos, substituindo
os momentos de brincadeira com a partilha e cumplicidade com a mãe.
Luísa
continuou a sua carreira de sucesso mantendo a fasquia de qualidade cada vez
mais alta até à altura em que deixou de trabalhar.
A
filha sem nunca ter sido incentivada a seguir o caminho profissional da mãe,
acabou por lhe seguir as pisadas e após um curso de música que parecia estar
dentro dos seus sonhos, mas que afinal não correspondia às suas ambições,
virou-se para a actividade de Luísa, que tão de perto tinha acompanhado.
A
filha de Luísa seguiu um caminho muito idêntico ao que a mãe tinha percorrido. Os
tempos já eram outros, mas a insatisfação pessoal e o desejo de ser inovadora e
cada vez melhor a nível profissional e feliz nas relações pessoais repetiam-se
na jovem mulher.
Vidas
Cruzadas 3
Naquele
dia o João vinha do local onde estava a mesa de voto das eleições que
supostamente iam decidir tudo, para afinal ficar tudo praticamente na mesma.
Dirigia-se para a saída do Liceu centenário, agora transformado em Escola
Secundária modelo do século 21, quando encontrou Rui, um sem-abrigo seu
conhecido, que lhe fez uma grande festa quando o viu.
Esta
casualidade veio despertar em João memórias algumas adormecidas com poucos
anos, outras desde a juventude.
João,
desde a sua tenra idade, teve sempre o ensinamento da família de que nunca
devemos abandonar os nossos sonhos e tentar realizá-los e que mesmo que por
algum imprevisto os sonhos sejam interrompidos, devemos ser como os gatos e ter
sete vidas, ou seja, cair de pé, levantar de novo e partir para outros
desafios.
Esta
lição foi-lhe transmitida, ainda com mais convicção pelos pais, quando de uma
situação desafogada financeiramente, de repente, tiveram de abandonar tudo de
um dia para o outro que tinham construído em África com os seus sonhos de
juventude e início de vida familiar e recomeçarem tudo de novo, do zero, noutro
local distante na metrópole.
O
tal encontro com o sem-abrigo fez recordar a João o 1º emprego onde ele e Rui tinham
trabalhado. Há uma explicação para a alegria do reencontro que aquele pobre
desgraçado manifestou. Apesar do Rui ter um pequeno atraso mental, desde que
deixou o emprego que lhes era comum, andou sempre mal na vida e esta sempre lhe
foi madrasta.
Já
quando foram colegas, ele chegava de manhã para trabalhar cheio de sacos com
roupa, porque dizia que tinha um quarto alugado e que, na sua ausência, lhe
roubavam coisas dos poucos pertences que ainda tinha. Ao fim-de-semana ajudava
a mãe nas feiras como vendedor ambulante, percorrendo o país, mas nunca
recebendo o carinho de filho.
Rui
ganhou uma amizade por João, que não é difícil de explicar, porque este nunca o
gozou, brincou ou se aproveitou da sua deficiência mental. Sempre conversou
normalmente com ele, sempre o aceitou como ele é.
Das
poucas vezes que se viram nos últimos anos, e apesar da necessidade evidente fruto
das carências porque passava, Rui nunca pediu dinheiro a João, por uma questão
de dignidade que sempre manteve. Bastava-lhe conversar e que lhe fosse dada um
pouco de atenção para ficar feliz, aliviado e renascido.
O
Rui, nem sempre foi sem-abrigo. Teve algumas fases melhores na vida. O pai era
pescador e a mãe era agricultora, num terreno baldio perto de casa. Para
sustento próprio e dos três filhos, pois o marido passava longos meses na pesca
do bacalhau, e para ganhar mais uns dinheiritos, também lavava roupa para as
vizinhas. Estas eram umas más-línguas, sendo a sua actividade predilecta a
coscuvilhice e especulação sobre as vidas dos outros. Como, daquela casa de uma
mulher com três filhos, não sabiam onde o marido andava por longos períodos
pensavam que ali havia qualquer coisa escondida.
Mas
a única coisa de que evitava mesmo falar, era do filho Rui, o mais velho, que
lhe tinha dado problemas no parto e que revelava alguma dificuldade no
relacionamento com os outros.
A
mãe de Rui isolava-se o que era possível porque não gostava de falar do
sofrimento que transportava dentro de si, pois quando chegado da pesca, o pai
de Rui passava as tardes na taberna e depois descarregava nela todas as
frustrações da vida.
Havia
um vizinho viúvo, também feirante, que sem ter nenhum interesse pessoal e só
por achar que aquela mulher não merecia a vida que levava lhe disse que quando
precisasse de alguma coisa era só dizer.
Essa
oferta de ajuda foi utilizada, quando na véspera da chegada do barco do Mar do
Norte, ela decidiu finalmente que tinha de deixar para trás aquela vida,
juntamente com o filho Rui, o irmão e a irmã. Ao aceitar a ajuda oferecida pelo
vizinho, este disponibilizou-lhe a carrinha velha que já não usava para as suas
viagens, com o depósito cheio, que lhe permitiria afastar-se até 400 km do
inferno vivido. Aceitou sem hesitar e prometeu que lhe devolveria a carrinha,
assim que pudesse.
Tal
nunca chegou a ser possível pois a vida da família nunca chegou a melhorar.
Começou a vender em feiras roupas para vestir e atoalhados para casa que
comprava nas fábricas têxteis em decadência.
Dormiam
os quatro na carrinha, em cima de uns cobertores velhos que cobriam a roupa
para venda. Lavavam-se nas casas de banho públicas, nas terras por onde iam
passando. Comiam o que o dinheiro das vendas diárias nas feiras lhes permitia.
No
período inicial de três anos a situação ainda correu de uma forma aceitável e
mesmo não estando tudo conforme era desejado, havia comida todos os dias, pelo
menos para uma das refeições. Por vezes, até era possível fazer alguns gastos extras.
Mais tarde a concorrência ficou feroz da parte dos ciganos que apareciam como
cogumelos nos mesmos locais de venda. Agora faltava-lhe o que tirava da terra
para poder alimentar os filhos e que era um valor importante que só era pago
com o seu trabalho e suor.
Certo
dia, a filha de 16 anos apareceu grávida e logo de seguida fugiu com um rapaz
moreno e bonitão, colega de negócio que tinha conhecido numa feira no norte do
país. Nem parecia bem uma mãe pensar isto, mas apesar de tudo, foi um alívio
inexplicável. Sempre era menos uma boca para alimentar.
Ficaram
os dois rapazes. O irmão do Rui, mais novo, era um revoltado por quase não ter
conhecido o pai, de tão prolongadas eram as suas ausências. Começou a fazer
pequenos delitos onde predominavam os roubos por esticão a idosas, furtos nas
mercearias ou as carteiras dos clientes das feiras.
Passado
algum tempo já pertencia a um gangue que roubava automóveis, assaltava casas,
indo ainda muito jovem para uma instituição de reintegração social.
Posteriormente foi preso pelos mesmos delitos e andou agarrado a drogas vindo a
morrer na cadeia, numa desavença entre grupos rivais. Também nessa altura a mãe
dizia que era um descanso quando o filho estava preso pois não andava a roubar
coisas a pessoas conhecidas dela para o queimar em pó. Ao que uma mãe podia
chegar!
Dos
três filhos, a sua descendência estava reduzida ao Rui que, ainda por cima, era
diferente. Mas ele acompanhou-a sempre pelas feiras, mesmo quando já trabalhava
no mesmo local do João, em que ganhando pouco a ajudou com parte do dinheiro
que recebia mensalmente.
Uma
das dificuldades cognitivas do filho era saber onde estava a cada momento e a
mãe numa fase de demência a que chegou, deixou-o numa aldeia numa zona
recôndita e partiu sem o levar. Era mais um filho que “queria” esquecer.
E
assim Rui, que já estava só, ficou ainda mais perdido no mundo. Quando
reencontrou o local onde trabalhava disse a todos que a mãe tinha morrido e só
conseguia ter uma conversa normal com o João, que o continuava a aceitar como
ele era.
Vidas
Cruzadas 4
Mariana
foi a primeira companheira na vida de João.
Nasceu
numa família em que era a mais nova de quatro irmãos. De pai militar de
carreira e mãe assistente social, desde muito nova, e ainda de fraldas,
acompanhou os pais nas suas actividades de militantes políticos, antes da
liberdade pós 25 de Abril.
O
pai tinha sido expulso do exército quando certo dia 1 de Janeiro, numa revolta
militar combinada entre vários colegas de armas em várias cidades, só ele honrou
o combinado clandestinamente e levou para a frente o compromisso de tomarem os
quartéis de assalto, para tentar mudar os destinos do país. Acabou por ficar
preso vários anos, tendo conhecido, por acaso, no cárcere o avô materno de João.
A
mãe, devido à sua profissão, em que tinha de contactar pessoas muito
carenciadas e de ter conhecido famílias disfuncionais, começou a participar
activamente em reuniões políticas. Abraçou esse caminho, principalmente após as
cheias como consequência de três dias de chuva que destruíram, por completo,
uma aldeia inteira na margem de um rio, submergindo-a com lama e que deixaram a
descoberto a pobreza que existia fora das cidades.
Os
irmãos de Mariana, todos rapazes, eram um arqueólogo, um marinheiro e um
electricista. Todos estavam bem na vida havendo alguns deles que já lhe tinham
dado sobrinhos.
Mariana,
desde criança, sempre foi muito independente, mesmo tendo a mãe super
protectora, tipo mãe galinha como tinha. Apesar dos quatro irmãos já serem crescidos,
a mãe, queria sempre ter as suas asas protectoras sobre eles. Era de algum modo
um ambiente sufocante de que todos eles tentavam fugir.
Desde
o liceu, frequentou ambientes de contestação estudantil, onde começou a fumar,
seguindo o mau exemplo de casa onde se fumava, entre todos os membros da
família, vários maços de cigarros por dia. Passeou-se por um curso
universitário que nunca chegou a acabar por ter começado a trabalhar na mesma
empresa que João.
Ao
princípio, por ele ser alguns poucos anos mais velho, nunca lhe deu muita atenção,
nem lhe deu muita importância, até porque trabalhavam em sectores distintos da
empresa e não se contactavam e raramente se cruzavam. Mas um dia, houve uma
reestruturação na empresa e passaram a trabalhar em equipa sendo ela superior
hierárquica dele. Tal alteração foi uma experiência muito boa para ambos porque
se completavam em capacidade de trabalho e de organização. Ela mais emotiva e
nervosa, e ele mais calmo e fleumático, faziam a equipa equilibrada e perfeita.
Até
que um dia numa viagem que fizeram de trabalho sem nenhum deles estar à espera
e para grande surpresa dos colegas, começaram a namorar. Passado pouco tempo, foram
viver para casa dos pais que estavam no estrangeiro e só temporariamente também
tinham a companhia do irmão marinheiro, quando estava em terra, por morar na
mesma casa.
Viverem
na casa dos pais dela, veio a revelar-se mais tarde uma má opção, mas foi a
hipótese possível tendo em conta as dificuldades de ambos por neste emprego não
usufruírem grandes salários, mas terem um prazer de estarem a contribuir para a
divulgação da leitura, num país saído de muitos anos de iliteracia.
Foi
um período muito intenso de militância em causas, de paixões e ódios, mas
também um período de paixões amorosas fortes e inesquecíveis. Foi um período em
que o dinheiro de Mariana e João só dava para comer iscas ao jantar num dia e o
empadão dos restos destas no dia seguinte. Só se usavam os transportes públicos
e não havia idas ao estrangeiro e o mais longe que se ia era rumo ao sul para a
casa da família.
Passaram
por uma fase de relacionamento difícil quando Mariana inesperadamente
engravidou e nem deu oportunidade a João de dizer que gostava de ter o filho de
ambos. A relação a partir daí não correu tão bem como antes.
Foram
anos únicos para ambos que viriam a acabar com a chegada dos pais, quando eles
decidiram regressar. A relação não durou muito mais tempo, porque o espírito
super protector da mãe veio deteriorar o ambiente entre ambos. Acabaram por se
separar mantendo-se sempre amigos, mesmo só se vendo de muitos em muitos anos.
Após
esta separação, Mariana teve vários namorados, com os quais nunca chegou a ser
completamente feliz, porque a relação com João tinha deixado marcas difíceis de
apagar.
Certo
dia conheceu um músico, quando desafiada pelo irmão mais novo, foi ver um
espectáculo. Foi amor à primeira vista. Logo ela que não acreditava nisso. Ficou
apaixonada pela expressão corporal, ritmo, empenho e força que ele colocava ao
tocar o saxofone ou a flauta. Era como se ele e o seu instrumento fossem um só
e ambos dançassem, ao ritmo da música. Como o irmão conhecia o grupo musical,
pediu-lhe que a levasse junto dele. Teve uma sensação como nunca tinha tido
quando conheceu o músico com uns caracóis lindos que a recebeu com um sorriso meigo
de orelha a orelha.
Como
ele andava pelo país a tocar, Mariana sempre que os espectáculos coincidiam com
o fim-de-semana, e não estava a trabalhar, ia ter com ele. Não sabiam se era
por ele também ter ficado apaixonado, mas cada vez tocava melhor, fazendo por
vezes solos que lhe dedicava, meneando a cabeça na sua direcção na assistência.
No
final da tournée de um verão, decidiram ir viver juntos para a terra dele, no
sul do país. Era uma aldeia de pescadores, tal como o pai dele. A mãe
trabalhava na indústria conserveira, sendo ambos pessoas muito simples.
Do
amor entre ambos nasceram três meninas chamadas Sol, Mi (caela) e Fá (tima), todas
com os caracóis do pai e a fisionomia da cara e os olhos da mãe. Desde pequenas
habituaram-se a ajudar a avó na horta e a ir à pesca na ria com o avô. Foram
criadas por eles e pela mãe pois o pai andava sempre por fora a tocar onde
calhava. Ora tocava sozinho em festas de casamentos e baptizados, o que ele
detestava, ora acompanhava músicos de nomeada no país e no estrangeiro. Era um
tipo de trabalho muito precário, que obrigava a agarrar todas as oportunidades
que apareciam.
Mas
sempre que estava em casa era uma festa pegada e não se percebia quem era mais
criança, se o pai, se as filhas. Brincava com elas de igual para igual e
compensava o facto de ter sido filho único e sempre ter desejado ter uma irmã
mais nova.
Tinha
composto uma música dedicada e para cada uma delas, no dia em que elas tinham
nascido, todas no mês de Abril, separadas por cerca de dez dias. Era músicas
doces, de embalar a fazer lembrar as ladainhas dos tempos dos avós.
Era
um músico que se dava bem com todos os colegas, de quem por vezes os outros se
aproveitavam e o engavam pelo facto de no fundo ser um pouco ingénuo e achar
que todos são boas pessoas. Aprendeu na pele, com o passar dos tempos, que a
inveja e a concorrência dos falsos amigos são muito pior que a dos inimigos.
Mantinha sempre Mariana fora do conhecimento dos percalços que lhe iam
acontecendo, mas quando se falavam ao telefone, era impossível escondê-lo da
mulher. Ela conhecia-o bem demais para ele lhe conseguir ocultar o que se
passava.
Passado
uns anos, quando Mariana já tinha duas das três filhas, foi organizado um
encontro entre os ex-colegas da empresa onde ela e o seu companheiro João
tinham trabalhado no que foi o primeiro emprego de cada um. Deslocou-se, de
propósito do sul à capital onde reencontrou uma série de pessoas que gostou de
rever, de saber que caminhos tinham seguido, onde viviam, que novas famílias
tinham, quantos filhos tinham.
Principalmente
gostou de estar com o João e recordar as famílias de cada um. Saber como
estavam os pais e irmãos de cada um. Que é cada um tinha feito naqueles anos
todos que tinham passado.
Mariana
contou que estava muito bem com o músico dos seus encantos, mostrando as
fotografias das suas filhas.
João
retribuiu dizendo que também ele tinha encontrado o amor da sua vida. Não tinha
filhos mas a mulher tinha dois filhos de um anterior casamento com quem tinha
uma óptima relação.
Os
pais de ambos estavam bastantes velhotes mas mantinham-se activos e actuantes
em movimentos cívicos e políticos, cada um dentro das suas limitações físicas.
Mariana
quando voltou a casa contou às jovens filhas como tinha sido o reencontro dos
ex-colegas e de alguns amigos, relatando que não tinha reconhecido alguns por
entretanto terem engordado bastante, mas que tinha gostado de rever o João, seu
primeiro companheiro, de quem já lhes tinha falado anteriormente.
Pôs-se
a pensar com poderia ter sido, quando vivia com João, se os pais não tivessem
voltado para a casa que era sua.
Teria
sido muito diferente, pois o João era uma pessoa muito calma, fria e reservada mas
o equilíbrio que procurava só o encontrou com o pai das suas filhas, que era um
expansivo, expressivo e apaixonado por tudo e por todos.
João
estudou num Liceu masculino, pois naquele tempo, nos anos sessenta, rapazes e
raparigas andavam em escolas separadas… não fosse o diabo tecê-las. Para
encontrar e estar com o sexo oposto era necessário ir às saídas das escolas
femininas, à saída da missa, aos bailes nas garagens e mesmo assim ainda havia
muita timidez de parte a parte, provocado pela falta de hábito de convívio.
Isto
só foi colmatado, da parte de João com a
chegada à Universidade, no início dos anos setenta. Mas por ser um curso
técnico elas eram uma raridade e quase todas deixavam muito a desejar em
relação à beleza. Mas no seu curso havia uma jovem pequenina, de olhos claros
por quem se encantou. Devido à sua timidez nunca passou de amor platónico. Além
disso ela tinha um namorado, chamado António que se tornaria seu marido e mais
tarde passou a ser o melhor amigo do João.
Com
o aprofundamento da amizade por António, João transformou o encantamento pela
sua colega numa relação de companheirismo e de partilha de interesses.
Dado
os dois amigos terem interrompido os seus estudos, cada um pelas suas razões,
João por se ter desiludido com o curso e António pelo período intenso da
actividade política na época. Ambos acabaram por se encontrarem a trabalhar no mesmo
local de Mariana, primeira companheira de João e Rui que viria a ser sem-abrigo.
Numa
fase posterior, João sentiu que estava a estagnar e começou a procurar outro
emprego que lhe permitisse evoluir pessoal e profissionalmente. Dado o bichinho
que já tinha dos livros e que não o largava, passou a trabalhar na indústria
gráfica, numa multinacional.
Foi
uma óptima experiência pois deu para avaliar as diferenças de trabalhar numa
jovem pequena empresa portuguesa, criada recentemente e uma empresa de um
grande grupo com uma administração estrangeira que mal falava português em que
tudo é programado e previsto, e com dificuldade em assimilar o espírito
“desenrasca” e o voluntarismo dos portugueses.
Mas
deu para ver o aproveitamento de criação e de desenvolvimento de competências
dos seus colaboradores para a evolução do bem comum, bem como a diferença de
produtividade em relação às empresas nacionais.
António
continuou a trabalhar no mesmo sítio, de onde João tinha saído, e acabou por
ficar desempregado quando a empresa fechou em consequência da falta de
dinamismo, capacidade de gestão e de acompanhar a evolução do mercado perdendo
completamente a razão de existência.
A
esse período sem trabalho juntou-se mais tarde a separação da antiga colega estudo
de João. Este acumular de situações provocou um profundo desgosto em António de
que nunca recuperou na totalidade.
Certo
ano, os dois amigos foram passar férias juntos por também ter coincidido com o
fim da relação de João com a sua primeira companheira. Estavam os dois
solteiros novamente. Divertiram-se nas férias como poderam tentando esquecer as
relações de onde tinham saído. Até frequentaram bares, em todas as noites
passadas nas praias do sul, convivendo com estrangeiros de todas as origens e a
falarem as mais diferentes línguas ou mesmo com os sotaques mais díspares.
Numa
noite, após a tarde toda em que as televisões nos bares tinham transmitido o
casamento real de uma princesa com um príncipe mal-encarado e carrancudo, todos
os cidadãos britânicos bebiam em excesso, não se percebendo se para comemorar
se para esquecer ao que tinham assistido.
No
final dessa noite, a polícia decidiu fazer uma rusga a todos os bares de
quarteirão, levando todos, portugueses e estrangeiros, em carrinhas, para a esquadra
que só estava a cerca de 100 metros da zona dos bares. Queriam identificar, um
a um, as cerca de 450 pessoas que se amontoavam por toda a esquadra, incluindo
pátio, jardim e escadas.
Começaram
pelos nacionais em que perguntavam o número do bilhete de identidade e o nome
do pai ou da mãe. Com essa informação, confirmavam pelo telefone, para a cidade
mais perto, se coincidiam com os dados no computador. Em caso afirmativo, e
caso não houvesse nenhum cadastro registado, o interrogado era de imediato posto
em liberdade.
Com
os estrangeiros surgiram situações caricatas com os polícias em frente de
máquinas de escrever, autênticas peças de museu, a questionarem em português
turistas que não compreendiam uma palavra do que lhe perguntavam.
A
acção policial prolongou-se de tal maneira que a meio da manhã seguinte, quando
João e António iam para a praia, ainda alguns ensonados turistas saiam da
esquadra.
O
que a polícia tinha pretendido era descobrir vendedores de droga que estavam
entre os entrepelados. Bastava perguntar a qualquer pessoa, que frequentasse os
bares que facilmente os identificava, não sendo necessário a polícia passar
pela situação ridícula que tinha criado.
No
período posterior à separação de António criou-se um pequeno grupo de cerca de
dez amigos que o quis ajudar a sair do buraco, esquecendo a relação já não
existente, mas tal nunca foi conseguido.
Uns
anos mais tarde foi detectada em António uma doença mortal que o levou
rapidamente. No seu funeral foi combinado entre os amigos, à semelhança do
filme “Os Amigos de Alex” que se passariam a juntar regularmente, como forma de
o recordarem.
Apesar
de todos terem seguido vidas profissionais e caminhos de vida diferentes continuam
a encontrarem-se, uma a duas vezes por ano.
Este
grupo de amigos é tão heterogéneo que na sua composição estão psicólogos,
antropóloga, médicos, engenheiros, especialista dos meios de comunicação,
técnico editorial, escritora, uma professora universitária e até uma de yoga.
Conheceram-se
todos nas cantinas das faculdades, local de muitos encontros, trocas de
experiência e debates de todos os temas.
Hoje,
além de recordarem a memória do amigo desaparecido, continuam a encontrarem-se
para reviver o passado e ao mesmo tempo saborear os petiscos que cada um leva.
Recordam
histórias e aventuras que protagonizaram, como daquela vez que acamparam numa
praia e os homens foram buscar água e ao passaram numa horta, um deles, que
tinha vivido no campo, disse para os outros todos citadinos, já viram estas
bonitas curgetes. Quando reparou que todos eles olhavam para o cimo duma
árvore, com ar de espanto e incrédulo disse: no chão seus estúpidos vê-se mesmo
que são meninos da cidade.
Neste
grupo formaram-se e desfizeram-se casais, mas continuaram todos a manter o
contacto.
Um
deles passou a ter uma namorada finlandesa, que mais tarde passou a ser a
segunda mulher. Num dos encontros já foi sugerido se não seria virtual, pois
mais ninguém a conhece, senão ele. Passou a tocar bateria num grupo de jazz e a
ser vegetariano, o que o limita a usufruir dos bons petiscos nos encontros.
Leva sempre um bolo de chocolate que sempre se desconfiou que fosse a mãezinha
que o faz pois não se lhe conhecem dotes culinários.
Outro
sempre foi conhecido, desde os tempos de estudante, por dizer que tem muito
trabalho e estar sempre cansado e com sono. Mas felizmente é um verdadeiro
cozinheiro e segundo todos falhou a opção profissional. Profissionalmente estuda
o comportamento das pessoas relativamente á reacção perante os produtos à venda
que enchem as lojas.
O
mais novo é jornalista free-lancer, já correu todo o mundo e de vez em quando
apanha falta às reuniões por estar em países diferentes dos destinos mais
habituais e menos turísticos, durante longos períodos. Aproveitou para voltar a
estudar virando-se para uma área completamente diferente da sua formação
original.
Outra
é antropóloga. Após a faculdade viveu num continente, numa época em que um
vulcão adormecido acordou e devastou uma cidade inteira. Trouxe as cores
berrantes na maneira de vestir a sua casa e a si própria. Está sempre com o
astral em cima e vive o seu trabalho junto das etnias não integradas com um
espírito de missão.
A
professora universitária depois de várias experiências profissionais de outras
áreas em que até foi desenhadora gráfica com sucesso, virou-se após a
frequência de um novo curso, para o ensino universitário numa área também
diferente da sua formação, dedicando-se à investigação dentro da sua
especialidade.
Os
médicos, que vivem numa cidade pequena do interior, rodeada de aldeias campestres,
contam sempre histórias dos seus doentes que ficam bons e que depois lhes levam
o carneiro, a galinha, os ovos, as couves, cenouras e batatas como
agradecimento pelo bem que lhe fizeram. Trazem sempre para o encontro as
prendas que os laboratórios lhes oferecem e de que algumas não se percebem bem
para que servem. Mas estas ofertas provocam sempre momentos hilariantes.
Fazem-se mesmos trocas entre alguns dos contemplados, por se coadunarem mais
com os interesses de cada um.
O
especialista nos meios de comunicação viveu num país estrangeiro anglo-saxónico
onde se formou como jornalista. Tem uma cultura muito acima da média e um
conhecimento sobre muitas matérias que normalmente o comum dos mortais não tem.
É um bom conversador e com ele as noites prolongam-se sem se dar por ela. Junta
a isto tudo o facto de ser um bom garfo. Se alguém quer saber de algum prato
típico de algum restaurante ou de um vinho inigualável de qualquer parte do
país é só perguntar-lhe.
A
professora de yoga foi namorada de João, quando ambos eram crianças, ainda na
experiência africana, em que este a esperava à janela, pela sua chegada à
escola que ambos frequentavam. Chegou a casar com um músico de sucesso, pai dos
seus quatro filhos. Foi viver para um país europeu onde está a metade do tempo
que não está no seu país. Dá e recebe cursos de yoga e relaxamento e tem uma
mente aberta e sempre disponível para se dedicar aos seus amigos.
A
escritora, mulher de João, é uma jovem de espírito, que espanta todos com a sua
abertura a coisas novas. Mãe de dois filhos brinca com os seus netos de igual
para igual, organizando espectáculos quando estão todos juntos. É a compradora
preferida das roupas deles sabendo escolher exactamente a peça de roupa que
eles gostam de vestir.
Finalmente
neste grupo, para o completar, falta falar do João.
Desde
o 1º emprego que trabalha em livros. Já fez praticamente tudo que se pode fazer
naquela actividade. Desde trabalhar numa gráfica a ter uma livraria, passando
por trabalhar em várias editoras de diferentes tipos.
De
tudo já fez. Só lhe falta escrever um livro. A sua companheira de vida sempre o
incentivou a tal. E apesar do olhar para uma folha branca, escrever e ser
exposto perante os outros os sentimentos mais pessoais e escondidos não ser um
dos sonhos do João, talvez o grupo de amigos esteja qualquer dia perante uma
nova realidade e uma surpresa inesperada. É o tímido do grupo, sendo muito
observador, não lhe escapando nada. Só fala mais, quando está perfeitamente
integrado, o que acontece nestes reencontros regulares. Quando estão juntos, o
humor fino que pratica, delicia todo o grupo de amigos.
Margarida
é mãe de dois filhos e avó de cinco netos. É casada pela segunda vez, com João,
casamento do qual não têm filhos apesar da insistência do actual marido.
Separou-se muito cedo do primeiro casamento e mudou de cidade à procura de uma nova
vida, diferente e melhor. Dessa primeira relação, além dos filhos comuns, ficou
um respeito mútuo pelas vidas que cada um seguiu, quer pessoal quer
profissionalmente.
Teve
sempre, desde jovem, uma actividade que gostava de ter desenvolvido, mas a vida
profissional e as dificuldades na criação sozinha de dois filhos desde pequenos,
não o permitiram. Era escrever. Escrever textos muito pessoais, textos sobre
arte, escritos sobre o que via à sua volta, o que a deslumbrava, mas também o
que a perturbava e inquietava. Agora, que vive só com o seu marido, por os
filhos já serem adultos com filhos, passa horas a escrever, esquecendo-se de
comer e de dormir. Ela que sempre foi uma mulher diurna passou a estar horas
seguidas, noite dentro, embalada a escrever. A escrever só para si própria,
tendo sempre o marido por perto a querer ler os seus textos e a dizer-lhe que
mostre a alguém com mais experiência que a ajudasse. Inicialmente frequentou
alguns cursos de escrita criativa que permitiram arrumar algumas ideias
espalhadas e não estruturadas. Posteriormente achou que tinha que começar a
escrever sem medo, para ver o que resultava. Hoje já publicou alguns livros. A
sua escrita é sobre coisas comuns da vida, mas em que os leitores reconhecem
alguém ou alguma vivência idêntica pela qual já passaram.
Um
dos temas sobre que escreveu, sem os identificar nunca, como seus, foram os
netos. Todos os anos no final do período escolar, enquanto ainda eram pré-adolescentes,
começava a imaginar e a preparar antecipadamente o período em que viveriam os
cinco, com os avós, todos juntos na casa da praia.
São
três raparigas, todas irmãs, e dois rapazes também irmãos, todos intercalados
um ano entre si, em escadinha. São todos tão diferentes de maneira de ser, de
feitio, de afectos, mas ficam todos entusiasmados com o período que passam com
os avós. Todos se dão bem, tendo lamentando que, excluindo aquele período na
praia, mais tarde na quinta no norte ou nos aniversários de cada um, raramente
se encontrarem durante o resto do ano. As vidas ocupadas e agendas desfasadas
dos pais não permitem esse convívio mais assíduo e constante.
Chegam
a casa dos avós, com as suas malas, tipo tróleis, cheios de coisas e de ideias
para encher os dias. Vão tão carregados, com roupa, livros, jogos e tudo o que se
possa imaginar, que parecem que irão lá ficar a viver para sempre.
Organizam-se
sozinhos em que cama cada um dorme na primeira noite e naturalmente há uma
separação de sexos, que se acentuou conforme foram crescendo. No dia seguinte
trocam todos de cama.
Combinam
a organização de quem põe a mesa e a levanta, havendo por vezes negociações de
trocas de calendário. Descobrem e comentam as ementas que a avó escreveu numa
lista que está no frigorífico, afixada com ímanes, achando que há sempre muito
peixe e pouca carne.
Descobrem
o dia em que vai haver o piquenique na relva a três metros da casa onde levam a
comida dentro de cestos, estendem as toalhas e deliciam-se com os petiscos da
avó. Chamam-lhe o “jantar de domingo”, independentemente do dia da semana a que
calhar.
Os
pais telefonam-lhes regularmente durante a manhã ou ao final do dia. São
despachados ao telefone porque as actividades em que estão ocupados e a
excitação da liberdade vivida, dá-lhes a sensação de não terem muito tempo
disponível.
Dos
cinco a mais velha é a mais magra e escanzelada, apesar das grandes pratadas de
comida que come todas as refeições. É muito atenta e perspicaz propondo sempre
ocupações que fujam do futebol e de estarem especados, passivamente à frente da
televisão. Aliás quase que não a vêm durante o dia, só lhe dedicando algum
tempo antes de se deitarem. É uma ginasta exímia e tenta que a mana do meio e
os primos façam alguns exercícios na relva que ela já faz com grande facilidade,
por treinar na escola todas as semanas pelo menos duas vezes. Por ser a mais
velha, e rapariga, tem um espírito protector, talvez até um pouco maternal, em
relação a todos os outros.
O
primo mais velho está na idade em que já não quer ser criança, mas também ainda
não é adolescente e muito menos adulto. Também é magricelas e todas as
actividades físicas que faz, fá-las bem. A preferida é a natação que também pratica
regularmente. Tem uma capacidade intelectual grande. Quase não estuda e tem
sempre muito boas notas. Basta-lhe estar com atenção nas aulas. Por vezes é
repreendido porque como tem uma capacidade de apreensão mais rápida que os
colegas os distrair e perturbar as aulas. Gosta de fazer truques de
ilusionismo, de jogar às cartas e de jogos de memória e de inteligência.
A
neta do meio é a gorducha, apesar de ser a mais alta. Não gosta de nenhum exercício
físico por causa das suas limitações. Tenta participar nas actividades
colectivas, mas muitas vezes exclui-se por se achar incapaz, o que não é
verdade. É muito insegura, tentando-se sempre proteger junto da irmã mais velha.
Nunca a marginalizando, esta tenta puxar por ela, mas normalmente sem sucesso.
É a mais afectiva e carinhosa tentando talvez assim colmatar as suas diferenças
e desvantagens para o resto do grupo.
O
rapaz mais novo gosta sempre de estar com os mais velhos. Fá-lo crescer, fá-lo
sentir maior e mais importante. É o mais cerebral de todos. Ainda não andava na
escola, mas por ter um irmão mais velho, já sabia ler, escrever e fazer contas
enormes. Parece estar sempre na lua, mas isso tem a quem sair. A avó materna e
o avô paterno também são uns sonhadores que de vez em quando põem os pés na
terra. Perde tudo. Chapéus-de-chuva e de sol, mochilas, camisola e tudo o mais
que é possível deixar em qualquer lado. Às vezes até não sabe onde pôs os óculos
que tem na cara. Não gosta de ir à praia por ter medo do mar, porque quando era
muito pequeno apanhou um susto na água.
O
benjamim é a menina querida de todos. É superprotegida e acarinhada, tratada
como se fosse uma boneca. As manas dedicam-lhe muito tempo e estão sempre a ver
se está tudo bem com ela. Nem é necessário os pais darem-lhe essa tarefa porque
elas o fazem naturalmente. Está sempre pronta para alinhar nas brincadeiras com
os mais velhos mesmo tendo dificuldade em acompanhá-los nas correrias à volta
da casa devido às suas pernas pequeninas e ainda inseguras. Todos a corrigem
nas palavras que ainda pronuncia mal e com vogais trocadas, havendo sempre
voluntários quando é necessário mudar a fralda molhada ou suja ou dar-lhe a
comida na boca.
Margarida
e o marido rejuvenescem quando têm os cinco netos juntos consigo. Apesar de o
cansaço que este convívio anual lhes deixa no corpo, sabe-lhes bem e vêem todos
os anos como os netos vão crescendo, vão evoluindo como pessoas, na
personalidade e como os gostos e os interesses vão mudando com a mudança de
idade. É visível como eles com o passar dos anos, cada vez se entretêm mais
facilmente sozinhos, não sendo necessário estar tão vigilantes em relação ao
seu comportamento.
Geralmente
o marido já está a trabalhar naquele período do ano e Margarida consegue gerir
durante o dia todas as actividades lúdicas, gastronómicas e a preparação de um
espectáculo que apresentarão mais tarde a toda a família. Os cinco jovens que
ficam na casa da praia durante o dia, e que não vão para a praia com a avó,
ocupam o seu dia nunca sentindo o desejo nem necessidade de sair da casa e do
jardim, só saindo à noite dessa área a que estão limitados durante o dia, para um
passeio a pé pela zona, agora já na companhia do avô.
Por
viveram em edifícios altos e com muita gente, os mais novos perguntam porque é
que ali as casas são todas pequenas e só há uma família por cada casa e não
aqueles amontoados de pessoas como no prédio onde vivem.
Á
noite já deitados na cama, e antes de adormecerem, todos lêem os livros que
trouxeram, e por vezes, já às escuras, conversam sobre o que fizeram durante o
dia, o que poderão fazer no dia seguinte ou ainda ideias para o espectáculo que
estão a preparar, muitas vezes acompanhadas de guerras de almofadas.
Às
vezes, os mais velhos fazem directas durante a noite, que tentam esconder dos
avós, mas que na realidade estes conhecem e fingem não saber. Geralmente os
avós deixam-nos fazer coisas que seriam impensáveis nas suas próprias casas.
O
espectáculo que fazem no final da estadia em casa dos avós é cada ano
subordinado a um tema sendo preparado com todo o preceito. Fazem um ensaio
geral na véspera, para os acertos finais. Tem um cenário que construíram, guião
combinado por todos, adereços, figurinos adaptados a cada intervenção que fazem
e a apresentadora que é a avó vestida a rigor com vestido comprido.
Começa
com música com as flautas que trazem, segue com canções e danças em moda
naquele ano, recital de poesia, ginástica, adivinhas, anedotas, truques de
ilusionismo, acabando com passagem de modelos pelos cinco netos.
Após
o espectáculo há oferta de prendas, feitas por eles próprios, a toda a
assistência composta por família, alguns amigos e um ou outro vizinho.
Depois
daquele evento voltam para casa com pena de ter chegado ao fim um período
diferente de tudo o que fazem no resto do ano. Nunca mais esquecerão aqueles
verões passados em casa dos avós.
Estes,
apesar do cansaço, ficam com uma sensação de vazio com a partida dos netos.
Respiram de alívio pelo descanso que o corpo já lhes está a pedir e recordam
algumas das situações tão ricas, apaixonantes e gratificantes que viveram nos
momentos que só regressarão no próximo ano.
Com
nostalgia recordam as fotografias das festas que colaram num painel à entrada
da festa, onde se vêem os netos desdentados e ainda sem óculos. Como eles
cresceram! Como são tão diferentes uns dos outros! Como se dão todos tão bem!
Fica
sempre no ar a interrogação se no ano seguinte, os netos já mais crescidos,
ainda quererão fazer o festival de verão, que já dura há alguns anos. Com o
crescimento de todos os interesses vão-se alterando pelo que a dúvida é
legítima.
Vidas
Cruzadas 7
Ofélia
era a criada, que em África trabalhava em casa dos pais de João. Dormia no
quarto ao lado da cozinha que ficava perto da saída para as traseiras da casa
onde estavam o jardim e a lavandaria.
Era
originária de uma família transmontana, tal como o lado paterno dos avós de
João.
Ofélia
tinha doze irmãos. De uma família de agricultores, só viviam do que plantavam e
semeavam, que vendiam semanalmente na cidade mais próxima a troco de pouco
dinheiro.
Antes
de ir para o ultramar, tinha rumado para a capital, para a casa dos pais de
João, quando o seu único namorado, e vizinho de infância, lhe disse que ia
emigrar dado não conseguir viver mais no país. Queria procurar uma vida melhor
que nunca encontraria na sua terra.
O
início do namoro de Ofélia foi numa data que nunca esqueceu, 4 de Setembro. Foi
quando os dois se encontraram no carreiro que separava as suas quintas e pela
primeira vez o rapaz loiro e de olhos verdes escuros, cor de azeitona, lhe fez
uma tímida carícia, ao tentar compor-lhe o cabelo que lhe caía para a cara
suada e queimada pelo sol do campo.
Como
havia um certo afastamento e até inimizade entre as duas famílias, provocada
pelas guerras constantes pela posse da água que partilhavam para regar os
campos de milho e videiras, tiveram sempre um namoro escondido de ambas as famílias.
Tinham
sempre uma certa dificuldade em encontrarem-se, para estarem alguns momentos
juntos, mas acabaram por arranjar uma solução. Já depois de nas duas casas todos
dormirem, saíam pé ante pé, e dirigiam-se para a eira, de um ou do outro, onde,
no verão, deitados na laje escura, olhavam para o céu, faziam projectos e
sonhavam. No inverno, aconchegavam-se nos fardos de palha que estavam amontoados,
num canto do estábulo.
Mas
tudo se começou a esfumar no dia em que o namorado de Ofélia percebeu que não
era futuro continuar a viver do campo que cada vez menos frutos davam. Decidiu
que queria sair do marasmo do país que não lhe daria nenhum futuro. Queria ter
uma profissão e achava que poderia ser um bom carpinteiro, dado o jeito e
perfeição que tinha em todos os trabalhos que fazia com as mãos calejadas.
A
ida para a tropa obrigou-o partir para uma cidade no sul, onde encontrou jovens
da mesma idade, também todos eles vindos do campo e que já tinham alguém da
família, emigrada. Esta era a única hipótese de decisão, que permitiria juntar
algum dinheiro, para enviar para os pais e ajudar toda a família.
Um
dia, num dos raros fins-de-semana que pôde sair do quartel e ter dinheiro para
ir à terra, disse a Ofélia a decisão que tinha tomado de assim que regressasse
da tropa, dentro de dias, partir, indo a salto para França. Nesse momento ela
percebeu que, provavelmente tinha acabado de perder um amor, até aí, o único da
sua vida.
Quase
todos os irmãos de Ofélia, já tinham seguido o mesmo caminho do ex-namorado,
partindo para o estrangeiro, assim que acabavam o serviço militar.
As
irmãs, também abandonavam o trabalho no campo e espalharam-se por várias
cidades. Como algumas, como Ofélia, só tinham a escolaridade mínima, e outras
eram analfabetas, acabavam por fazer trabalhos domésticos em casas com posses
para suportar os custos de ter quem lhes fizesse as lides da casa, a troco de
pouco mais do que comida, dormida e a folga ao domingo.
Com
o fim abrupto do namoro, Ofélia decidiu também seguir o caminho das irmãs mais
velhas e ir para a capital onde já tinha uma das irmãs a trabalhar em casa de
uma família das mesmas origens transmontanas.
Foi
aí que conheceu Ricardo, que mais tarde seria pai de Luisa e João.
Após
alguns meses na capital, Ricardo desafiou-a a acompanha-lo a ele e à sua
recente e jovem esposa Rosa, a partir para África continuando a trabalhar para
eles em sua casa. Ofélia nem pensou duas vezes e pela primeira e única vez na
vida viajou de avião com a família que a contratara.
A
experiência africana, em que fez parte integrante da família, durou quinze
anos. Viu nascer e crescer Luísa e João. Prolongou-se, até todos regressarem
inesperadamente de volta depois do início da guerra nos anos sessenta.
Quando
voltou de barco ao cais da capital sentiu-se muito desambientada na cidade onde
tinha trabalhado em casa dos pais de Ricardo, durante um curto período.
Passado
um ano decidiu regressar à sua terra, onde alguns dos irmãos também já estavam
depois de voltarem, algo desiludidos, dos destinos para onde tinham emigrado.
No
primeiro domingo que foi à missa reencontrou o homem que tinha sido namorado,
quase vinte anos antes. Cada um contou as suas aventuras e percalços que tinham
tido nas vidas que tinham levado longe da sua terra natal.
Mas
fugiam de perguntar um ao outro qual a situação pessoal actual de cada um. Só
falavam do passado. Tinham receio que o presente os afastasse de novo. Não
sabiam se eram casados, se tinham filhos. Eram assuntos tabus, ou simplesmente
preferiam não saber e continuarem com as dúvidas que tinham sobre esses
assuntos. Não queriam reviver o sofrimento que cada um tinha tido quando se
tinham afastado/separado anteriormente. Resistiram a partilhar o que de mais
íntimo lhes ia na alma. Limitaram-se a falar de tudo o que os rodeava, casa,
irmãos, amigos comuns e pouco mais que algumas trivialidades.
Os
anos passados tinham apagado o afastamento entre as duas famílias vizinhas. Os
pais de ambos já haviam morrido. Ambos os lados tinham perdido irmãos no início
da guerra em África. Parte de cada família continuava emigrada e à espera de
melhores dias para regressar. As duas famílias eram agora vizinhas sem nenhum
tipo de problema. A entreajuda tinha substituído o anterior distanciamento.
Ofélia
e o ex-namorado, só se voltaram a encontrar passados uns meses, no casamento de
um outro vizinho e amigo comum.
Quando
o viu ao longe, Ofélia aproximou-se e não mais o perdeu de vista. Apercebeu-se
que ambos tinham ido sós ao casamento, sem nenhuma companhia.
Sentaram-se
os dois, ligeiramente afastados no sítio mais distante do altar, na última fila
dos bancos corridos da igreja. Foi como se quisessem estar o mais perto possível
da porta de saída, não se fosse dar o caso de quererem fugir um do outro.
Mas
não foi isso que aconteceu. Quando o padre estava a perguntar aos noivos:
“Aceita… para sua mulher…”, Ofélia, aproximou-se dele, agarrou-lhe na mão e
muito corada e cheia de coragem perguntou muito depressa: “Queres casar
comigo?”. Felizmente estavam os dois sentados, senão tinha-se ouvido vindo do
fundo da igreja o estrondo de alguém a cair no chão com o espanto de uma
pergunta tão inesperada. A aceitação foi imediata. Tinham de recuperar todos os
anos que tinham estado separados após o namoro interrompido abruptamente.
Quando
a igreja se esvaziou e o pároco regressava do cimo das escadas da fotografia da
praxe com os noivos, Ofélia e o recém/antigo namorado chamaram-no à parte.
Tentaram acertar a data do casamento e além de receberem em troca os parabéns
do padre este diz-lhes: “Meus filhos. Eu sabia o que cada um de vós me dizia no
confessionário. Fico muito feliz pela vossa decisão. Acho que a merecem. Mais
uma vez parabéns!”
Após
o casamento, decidiram ir viver para uma outra localidade. Queriam abrir uma
loja de móveis. Tinha-se concretizado o sonho de carpinteiro do marido e
achavam que o casal tinha capacidade e engenho para viverem do que ele
construía para vender e do que ela cultivava no terreno anexo à casa. Foi o que
aconteceu durante largos anos.
Tinha
sido com muita pena que Ofélia perdera o rasto da família com quem vivera em
África. Ainda tinha feito várias tentativas para os reencontrar, mas foram
sempre sem sucesso. Gostava de saber como estariam Luísa e João que tinha
criado como se fossem seus filhos, até terem regressado à metrópole todos de
barco. Queria saber como seguia a vida de cada um.
Passados
muitos anos, numa ida casual à praia nos arredores da capital, o que já não
fazia desde quando tinha regressado de África, reencontrou João.
Como
foi bom rever o seu menino, mais gordinho e já com cabelos grisalhos. Só se
recordava de ter tido tanta alegria no dia em que se tinha casado com o
namorado reencontrado, mas nunca esquecido.
Ricardo
é casado com Rosa e pai de João e de Luísa. Constituem a família Menino.
Foi
o sétimo filho de um casamento em que dadas as dificuldades nos partos na época
só sobreviveram ele e o irmão mais velho. Teve sempre um comportamento e relacionamento
inconstante e difícil com os pais. Foi desde criança problemático de criar e de
educar pois os pais tinham um visão excessivamente austera e uma noção
antiquada, ultrapassada e rígida das relações familiares.
Ricardo
sempre considerou que tinha sido um filho não desejado e, por essa razão, se
sentiu marginalizado e menosprezado. Mesmo o relacionamento com o único irmão
não era fácil, talvez motivado pela diferença de quinze anos de idade.
No
seu percurso escolar, foi sempre um aluno indisciplinado, de tal modo que
perante as constantes queixas na escola sobre o seu comportamento os pais o
enviaram para um colégio interno o mais longe que podiam de casa, no extremo norte
do país. Acabou por ir para um colégio católico o que o levou toda a vida, apesar
de ter sido baptizado, a dizer-se ateu e a não aceitar que os seus filhos
seguissem aquela religião. Talvez as suas convicções políticas também tivessem
contribuído para isso.
Quando
regressou do internato forçado e para contrariar os pais que queriam que
seguisse o curso de advocacia, disse-lhes que queria ir para medicina.
Não
chegou a finalizar o curso porque três situações que se conjugaram contribuíram
para isso. A primeira foi o relacionamento com os pais que se degradou cada vez
mais. Outra foi o facto de se ter envolvido em lutas políticas não toleradas
pelo governo de então em que havia a grande possibilidade de vir a ser preso.
Por último o querer afastar a sua futura mulher, Rosa, de uma paixão que tinha
tido por um professor, fazendo-a esquecer.
A
tudo isto juntou-se o facto de os pais apesar de viverem folgadamente, e
poderem fazer tal, nunca terem contribuído financeiramente, ajudando no início
de vida do casal.
Na
mesma semana que casaram, Ricardo e Rosa partiram para África, onde iriam
iniciar uma nova vida e tentar deixar para trás algumas dúvidas, não
resolvidas, que nunca os iriam abandonar.
O
curso incompleto de medicina não iria permitir que iniciasse uma profissão
dentro da área da saúde e Ricardo tentou junto de alguns seus conhecidos, que
também tinham ido para a mesma terra à procura de oportunidades, encontrar uma
ocupação.
Mas
como reflexo de um feitio de relacionamento conflituoso e difícil que sempre o
tinha marcado, todas as portas se mantiveram fechadas, não surgindo nenhuma
saída profissional.
Após
Rosa ter aberto uma escola infantil onde ela ensinava e dirigia, Ricardo acabou
por abrir uma escola primária que orientava. Não podia ensinar porque a sua
formação não o permitia, mas coordenou com muito empenho e qualidade uma escola
que ficou como referência.
Os
pais dos alunos confiavam em pleno nas suas opiniões sobre a educação e
formação dos seus filhos. Todos os dias recebia à porta cada aluno quando
chegavam acompanhados por quem os levava. Por vezes dizia-lhes que a criança
tinha de voltar para casa pois estava a ficar doente, com febre, com sarampo ou
varicela, bastando-lhe olhar para os olhos. Os pais inicialmente reagiam mal a
isto, mas passado um ou dois dias confirmavam-se as indicações que tinham
recebido de Ricardo.
Também
reconhecia facilmente quais dos miúdos que não iriam ser destros e recomendava
aos pais para nunca contrariarem a tendência dos filhos, porque senão eles
iriam ter comportamentos inesperados, como por exemplo, voltar a urinar de
noite na cama, coisa que já tinham deixado de fazer até então.
Na
vivência africana, talvez provocado pelo calor ou pelo ritmo de trabalho ser
bastante mais calmo, o seu mau feitio e intolerância a certas situações
esbateram-se ligeiramente.
Contudo
a desconfiança em relação à paixão que o professor da mulher tinha tido por ela,
e que ele sempre achou que tinha sido correspondida por Rosa, nunca deixou que
o casamento fluísse num caminho de franqueza e de felicidade.
De
tal modo não era saudável a relação do casal que também Ricardo nunca se
apercebeu, até a mulher lhe contar a medo, receando a sua reacção violenta, o
que tinha acontecido em casa entre um criado e a filha.
Logo
com o empregado favorito, o Joaquim, que ouvia uma rádio clandestina que incentivava
o desejo de emancipação e independência do seu povo. Logo com quem Ricardo
tinha conversas e com quem descobrira algumas afinidades entre as suas ideias
políticas e os anseios e os desejos do jovem, para o seu país. Logo aquele
rapaz africano que lhe tinha dito que se houvesse alguma vez uma revolta,
Ricardo podia estar descansado porque ele sabia como ele tratava com respeito os
da sua raça.
Numa
conversa com a mulher decidiu rapidamente, sem o apoio dela, enviar, ou melhor
despachar a filha Luísa para casa dos avós paternos na metrópole. Foi uma
maneira de deixar de ver a filha à frente, e tentar esquecer, que não a tinha
protegido dum acto violento.
O
ano incompleto em que a filha esteve ausente, e com quem o pai se recusava sempre
a falar ao telefone, deixando essa tarefa à mãe, dedicou-se obcessivamente à
escola, fugindo assim de estar em casa.
Além
disso a sua sogra Inês, tinha chegado para apoiar a mulher na situação
insuportável e difícil de estar afastada da filha, por decisão exclusiva do
marido.
Com
o regresso de Luísa a casa, mais cedo do que o esperado, Ricardo ouviu a
insistência e desejo desta querer ter um irmão. Foi um dos poucos pontos em que
esteve de acordo com a mulher nos últimos anos, e ficou combinado, que mesmo
não tendo relações havia alguns anos, corresponderiam ao anseio tão insistentemente
solicitado.
Passado
cerca de um ano, nasceu o João que era tão parecido com a mãe Rosa e a avó
Inês, que era um espanto para todos. Tinha o mesmo sorriso e as mesmas covinhas
ao lado da boca. Durante um período inicial o pai ainda acompanhou o seu
crescimento e evolução, mas mais tarde voltou ao comportamento anterior que já tinha
acontecido com a filha e afastou-se do afecto que eles tanto ansiavam.
Este
distanciamento levou a que ambos filhos, Luísa e João, se aproximassem cada vez
mais da mãe, da avó Inês e da empregada Ofélia estreitando ainda mais as
relações de afecto e cumplicidade. Isto provocou uma reacção ciumenta de
Ricardo que se manteve o resto da vida.
Quando
passado uns anos houve a revolta, com o objectivo da independência das
populações autóctones, Ricardo viu aparecer em sua casa o antigo empregado
Joaquim, que lamentou o que tinha feito à sua filha, porque aquela família
sempre o tinha tratado tão bem não o merecendo. Mais uma vez relembrou a
informação, que anteriormente já tinha transmitido de que podiam estar
descansados, que pelo comportamento da família, tanto quanto fosse possível, não
iriam sofrer retaliações praticadas por alguns excessos de vingança cega.
Assim
foi. O que Ricardo e ninguém podiam prever foi o que aconteceu a seguir. Os
colonos, os que tinham tido comportamentos racistas e discriminatórios perante
os seus empregados/criados, assustados com as retaliações que lhes podiam
acontecer às suas famílias, rapidamente enviaram as mulheres e os filhos para a
metrópole, ficando eles a defender as suas terras, casas e outros pertences.
Este
situação, que decorreu logo nos meses iniciais da revolta, provocou que em
pouco tempo, as duas escolas da família Menino perderam cerca de 300 alunos de
uma vez. Ficaram pouco mais de 30 crianças, cujos pais achavam que tudo se iria
resolver rapidamente ou porque não tinham posses para reenviar as famílias de
volta de onde tinham vindo, por terem chegado havia pouco tempo ao paraíso
prometido.
Apesar
de também não quererem partir, Ricardo e a família não tiveram alternativa a não
o fazer. Partiram primeiro de barco os filhos Luísa e João e as mulheres da
casa, Rosa, Inês e Ofélia. Ricardo ainda ficou, para partir dois meses mais
tarde, após entregar a casa em que viviam e tentar vender as duas escolas, o
que aconteceu como é comum nestas situações, a um preço irrisório a uns
especuladores que enriquecem à custa das desgraças dos outros. Encaixotou
alguns móveis, roupa, livros e partindo deixou para trás algumas memórias e recordações
de vida.
O
regresso, a casa dos pais, agora com mulher e dois filhos, foi humilhante para
Ricardo. Havia todo um passado de mau relacionamento com os pais que não tinha
sido apagado pelo afastamento a que tinham estado sujeitos. Continuaram a não
ajudar financeiramente no recomeço de vida que tentavam ter. A agravar esta
situação acrescia a dificuldade de Ricardo encontrar emprego que permitisse
todos saírem da casa com decoração colonial fruto do pai ter sempre trabalhado
como funcionário público nas diversas colónias portuguesas de Ásia e África.
Quando
se empregou, numa actividade que fugia completamente à sua formação e da sua
experiência profissional africana, poderam rapidamente sair dali e disfrutar de
uma pequena casa junto à praia. Foi um novo período em que voltou alguma felicidade
à família. Ricardo acabou por singrar na empresa que tinha acabado de ser
criada e cresceu profissionalmente com o crescimento dela.
O
facto de a sua mulher ter desejado continuar a trabalhar com crianças e ter
conseguido empregar-se primeiro que ele, criou-lhe sempre problemas de
consciência, por achar, como machista que era, que o homem é para trabalhar e
sustentar a família e a mulher era para estar em casa a tomar conta dos filhos.
Sentia-se inferiorizado em relação à mulher, apesar dela nunca para tal ter contribuído
com o seu comportamento.
Com
o passar dos anos o seu feitio foi melhorando ligeiramente, mas mesmo assim
como reflexo da educação que tinha recebido dos seus pais, nunca foi capaz de
ajudar financeiramente os seus filhos, quando eles em alguma altura das suas
vidas o necessitaram.
O
seu relacionamento com a filha Luísa continuou sempre muito difícil pelas suas
maneiras de serem muito semelhantes, apesar de as perspectivas de vidas serem
opostas.
Com
o filho João teve uma maior proximidade mas com o decorrer do tempo a relação
foi-se degradando, apesar da dedicação e acompanhamento que aquele lhe
dedicava.
Vidas
Cruzadas 9

Inês
é avó de Luísa e João e mãe de Rosa.
Nascida
de famílias muito modestas, nunca teve possibilidade de estudar para além da
quarta classe. Dado ter casado com um amigo da família, guarda-fiscal, viúvo e
com dois filhos ainda crianças, nunca teve oportunidade de ter uma profissão. O
seu único e importante trabalho foi ser mulher e mãe e criar quatro filhos, um
dos quais Rosa.
Mudava
regularmente de casa, em consequência da profissão, algo nómada, do marido. O
seu dia-a-dia resumia-se a tratar dos filhos, cozinhar, cozer, bordar, limpar a
casa e gerir um orçamento parco para poder alimentar seis pessoas. Nunca
diferenciou no tratamento e dedicação entre os filhos e os enteados. Era o que
se podia chamar uma mãe-coragem.
Como
Rosa, irmã de Manuel, era a sua única filha, ela ajudava-a nas denominadas
tarefas femininas. Inês e o marido conseguiram que os quatro filhos tivessem
mais formação que eles tinham tido, fruto do modo como Inês conseguia esticar o
dinheiro que chegava a casa todos os meses.
Para
juntar mais uns tostões ainda arranjava tempo e paciência para bordar lençóis,
toalhas e roupa para pessoas que ia conhecendo conforme mudavam de localidade.
A qualidade dos trabalhos e a quantidade de encomendas que recebia era tal que
por vezes nem as conseguia satisfazer na totalidade em tempo útil antes de mais
uma mudança de casa.
O
marido de Rosa, dadas as terras por onde ia passando juntamente com a família,
permitiu-lhe conhecer realidades diferentes em várias zonas do país. Isso
levou-o a começar a perceber que o que era defendido pelo governo repressivo de
então era o oposto do que constatava com os próprios olhos. Só encontrava
miséria e pobreza por todo o lado, fosse no norte ou no sul. Como consequência
começou a pôr em causa e a contestar certas medidas, das quais ele era um dos
executantes, como representante local no posto da guarda onde estava colocado.
Como
resposta, a hierarquia militar, dado começar a considerá-lo um elemento
estranho que era necessário isolar para não espalhar os seus pontos de vista,
como uma erva daninha, encontrou como solução a mudança constante de posto e
consequentemente de localidade. Ora ia para norte no inverno gélido ora era
colocado no sul escaldante, tentando assim quebrá-lo na vontade de contestar.
Tal
solução teve duas consequências.
Uma,
a negativa- A família no mesmo ano tinha de mudar duas ou três vezes de zona e
consequentemente os filhos mais novos de escola.
Outra,
a positiva- Tinham conseguido o oposto do pretendido. Tinha-lhe possibilitado
esclarecer cada vez mais militares da guarda-fiscal sobre o que estava mal no
país.
Ao
comando militar, só lhes restou uma alternativa. Pela primeira vez na história
da corporação, expulsaram um elemento do corpo que era suposto ser impenetrável
de elementos considerados nocivos à ideologia do estado vigente, com perda de
vencimento e direitos sociais adquiridos.
Inês
foi sempre a primeira a apoiar o marido na defesa de causas que, a nível
pessoal, só tinha dificultado e trazido problemas à família. Como tal
incentivou-o a continuar a defender as ideias que também passou a partilhar.
Apesar
do ar frágil e doce de Inês, as ideias de liberdade, de direito a melhores
condições de vida e bem-estar para todos, que preconizava como o marido,
mostrou uma mulher de muita garra e fibra, até aí adormecida.
As
dificuldades financeiras porque passaram, levou os filhos voluntariamente e sem
nenhum apelo nesse sentido dos pais, a procurarem trabalho onde o encontrassem.
Os
dois filhos do primeiro casamento, mais velhos, foram trabalhar, um para uma
mercearia como marçano, o outro para o balcão de uma loja de tecidos. O
terceiro rapaz, mais dado aos números, foi para um escritório onde começou por
ajudar a fazer recados fora e rapidamente passou a ajudar nas contas e a fazer
a escrita da pequena empresa.
Só
Rosa, dado ser muito mais nova, e os pais não terem permitido o abandono dos
estudos, continuou na escola que lhe daria formação para poder ser professora
primária.
Rosa,
naquele período difícil porque a família passou, não teve a possibilidade de
contribuir monetariamente. Em alternativa, ajudava a mãe, em casa, tanto quanto
podia ou sabia, como forma de minorar um estado de coisas que se arrastou até à
morte do pai, passados três anos.
Por
estarem muito tempo juntas, e serem as únicas mulheres da casa, Rosa e Inês
ficaram muito ligadas afectivamente partilhando mutuamente angústias, anseios e
sonhos.
Inês
pressentiu desde o primeiro momento, a paixão impossível da filha Rosa pelo
professor que tinha na escola de formação artística que frequentava. Quando viu
a sua fotografia, espantou-se com as semelhanças físicas que tinha com o seu
marido, já falecido. Alertou-a para o facto se não estaria a transferir para o
professor o quanto gostava do pai quando ele era vivo. Apercebeu-se pelas
longas conversas que tinham, quando conjuntamente bordavam roupa, para fora,
que tal não era assim.
Inês
foi também a primeira a saber que o rapaz chamado Ricardo que Rosa tinha
conhecido, quando saía com os amigos dos irmãos, não se encaixava no feitio
dela e tentou chamá-la à realidade. Mas provavelmente Ricardo era um escape à
paixão pelo professor, tentando fazer esquecê-lo.
A
partir do momento em que ela o aceitou como marido e ambos decidiram partir
para África, Inês sempre a apoiou em tudo o que podia, dentro das suas
limitações.
Tanto
que assim que quando a filha lhe escreveu numa carta sobre a situação horrível
que a neta Luísa tinha vivido, prontificou-se de imediato a partir, para tão
longe, em seu apoio.
Ela
e a fiel empregada Ofélia foram os únicos suportes de Rosa no período de cerca
de dois anos que decorreram até ao nascimento de João.
Eram
impressionantes as semelhanças físicas que o neto tinha com as duas mulheres da
família, Inês e Rosa.
Inês
foi ficando, ficando e acabou por estar em casa da família até ao João já ter
seis anos e a irmã Luísa catorze, quando todos tiveram que partir
inesperadamente de África.
No
regresso à metrópole Inês, separou-se da família e foi viver para o sul, junto
do filho mais velho. Os dois filhos do primeiro casamento do marido, já não
eram vivos.
Foram
uns anos em que teve muita dificuldade em reatar o convívio familiar que tinha
com a filha Rosa e os dois netos. Ricardo, o genro, levantava todo o tipo de
obstáculos a esses reencontros, arranjando as mais variadas desculpas, cada uma
menos plausível que a outra. A relação, entre ambos, era tão pouco amigável que
quando Ricardo recebeu o telefonema do cunhado a dizer que a sogra tinha
morrido, só passado um dia do funeral realizado é que o disse à mulher alegando
que não a queria fragilizar mais do que ela estava.
Vidas Cruzadas 10
A
mãe de João e Luísa e mulher de Ricardo é Rosa.
Nasceu
numa família sem grandes recursos, de pai guarda-fiscal e de mãe doméstica,
como era tradição na época.
Devido
à profissão do pai percorriam o país conforme ele era colocado em quartéis de
fronteiras terrestre ou marítima, onde uma das principais tarefas era controlar
o trânsito e o contrabando de mercadorias.
Como
tal, Rosa apesar de ambas das famílias dos pais serem algarvias, tinha três irmãos
mais velhos cada um deles nascido numa terra diferente, do norte.
Ela
própria tinha nascido e sido criada até aos seis anos, num quartel-fortaleza
numa bela vila piscatória, a sul de Lisboa. Depois foi mudando de casa/quartel
vários anos, trocando ao mesmo tempo de escola. Regularmente tinha outros
professores e criava novos amigos conforme mudava de zona.
Até
que na adolescência, para se fixar numa escola, foi viver com o irmão mais
velho, do qual tinha uma grande diferença de idades por ser o filho mais velho,
do mesmo pai mas de outra mãe, e este ter começado a trabalhar no comércio e de
precisar de uma residência fixa e não itinerante.
Era
um irmão que se dedicava, como um pai, à menina de cabelos e olhos lindos e
duas covinhas dos lados da boca que nunca deixou de ter, e que brilhava de
orgulho na sua companhia quando estava com os seus amigos e amigas.
Levava-a
ao teatro e ao cinema, ensinava-lhe as canções da moda, passeavam de barco no
jardim, nos dias de canícula. Partilhavam tudo, incluindo o parco salário que ele recebia. Tinham uma cumplicidade enorme. Aconselhavam-se um com o outro nas mais pequenas coisas, não se notando a diferença de idades que era de quase uma geração.
Rosa
confidenciou ao irmão quando começou, pela primeira vez, a sentir um aperto no
estômago além de uma ansiedade enorme quando esperava pelas aulas do professor
de desenho. O irmão alertou-a para o facto de tal ser perigoso, por ela
acalentar esperanças, numa paixão impossível, e poder sair magoada por desejar
uma coisa improvável de se concretizar.
Mas
Rosa tinha um deslumbramento pelo professor que lhe tinha despertado o
adormecido sonho do desenho, juntando o facto de lhe ter aberto o coração para
novas emoções. Tentou seguir o sábio conselho do irmão e aproveitou o facto de
com a mudança de ano escolar e nova professora na disciplina, tentar esquecer um
possível problema.
No
último ano de estudo, conheceu Ricardo durante as férias. Era um amigo de um
dos outros irmãos. Não lhe prestou muita atenção até porque lhe pareceu, pelo
tipo de conversas que tinha, que teria namorada. Não era uma pessoa muito
agradável ao primeiro contacto, parecendo ser uma pessoa amarga por estar sempre
zangado com tudo o que rodeia.
Rosa
não gostava muito de praia, e não sabia nadar, mas acompanhava o irmão e ia com
ele para as praias da costa litoral. Muitas vezes também aparecia Ricardo que começou a aproximar-se e a falar mais com ela. Tentava ganhar a sua amizade, apesar da grande resistência e afastamento de Rosa. Teve uma aproximação e um comportamento com se fosse uma aranha e teceu uma teia de sentimentos à volta dela. Quando ela deu por isso estava presa. Ricardo tinha-se aproveitado da fraqueza dela após a paixão pelo professor e soube explorar e tocar em pontos muito sensíveis do seu íntimo. Era um manipulador de emoções nato. Acabaram por começar a namorar. Só depois Rosa começou a conhecê-lo melhor, o seu feitio, o afastamento e incompatibilidade com os pais, as suas opções de vida, quer pessoais, quer políticas.
Ricardo
conseguiu com o passar dos meses afastá-la da ligação familiar, dizendo que não
gostava desta ou daquela pessoa. Queria que estivessem os dois isolados dentro
de um mundo como se fosse um casulo só deles.
A
situação foi piorando de tal modo que Rosa reacendeu de novo a paixão pelo
professor. Sempre que tentava fugir daquele cerco, geravam-se discussões
infindáveis e cada vez mais agressivas verbalmente. Mas teve de pesar nos dois
pratos da balança entre a paixão impossível com o professor ou o desequilíbrio
constante com Ricardo. Infelizmente, como considerou mais tarde, decidiu pelo
segundo caminho. Só a mãe e o irmão mais velho sabiam da relação platónica que
nunca assumira.
Rosa
aceitou que se casasse com Ricardo e que partissem de imediato para uma colónia
africana. Com isto resignou-se aos desejos do marido de se afastar de ambas
famílias, dos amigos, do professor. Afastou-se de tudo o que lhe agradava e
partiu para um lugar onde não sabia o que a esperava. Se uma nova vida, se mais
do mesmo que até ali tanto a tinha marcado e magoado.
Um
novo clima e novo local até fez inicialmente melhorarem o seu ânimo. Mas o
isolamento e dificuldade em criarem novos amigos voltaram ao de cima.
Passados
meses de terem chegado engravidou numa altura em que estava a idealizar uma
escola, que se chamaria Escola Infantil, como não havia nenhuma. Teria um novo
tipo de ensino mais moderno e de acordo com as novas tendências da pedagogia e
métodos de ensino europeus. Mesmo no final da gravidez a escola abriu e teve um
grande impacto na sociedade local. Com a passagem de boca a boca de como ela
funcionava, começaram a surgir os pais que não queriam perder a oportunidade dos
filhos estarem na escola com métodos vanguardistas de ensino.
Passado
uma semana da filha Luísa ter nascido, já Rosa estava a acompanhar os alunos na
escola. Valeu-lhe a grande dedicação da empregada Ofélia para ajudar após o
nascimento da filha.
Os
anos foram passando e Rosa de vez em quando recordava sozinha com saudade e
algumas lágrimas, a paixão que tinha tentado esquecer. O marido sentia ciúmes
do sucesso da escola da mulher e nem desconfiava e se apercebia das cartas que
chegavam e partiam para longe.
Rosa
escrevia ao professor a contar a experiência da escola, a sua evolução, o seu
crescimento e as suas hesitações do caminho a seguir. O ex-professor respondia-lhe
sempre. De longe, apoiava-a em tudo mas terminava sempre enviando cumprimentos
para o marido. Nunca da parte dele houve qualquer falta de respeito, pelo
casamento que ele sabia ser infeliz.
Quando
a filha de Rosa ainda era uma menina, houve o acto bárbaro da parte do
empregado Joaquim que trabalhava lá em casa desde o dia em que tinham chegado.
Tinha-os ajudado a transportar e a montar os primeiros móveis da casa. Tinha plantado
as flores e as árvores do jardim. Tinha sempre colaborado em tudo o que lhe era
pedido. Construiu em madeira, o berço quando Luísa nasceu.
Rosa
não se apercebeu logo o que se tinha passado. A sua cabeça estava sempre na
escola para esquecer o cerco sufocante que o marido lhe fazia. Ofélia ainda a
alertou que Luísa estava estranha. Queria estar sempre perto dela. Quase não
dormia e não tinha apetite. Tinha medo da noite, chorava sem motivo aparente.
Fugia de tudo e de todos. Não queria estar no quarto, mas também se recusava a
estar no jardim. Algo de anormal se passava. Até que conseguiu que ela lhe
dissesse que o Joaquim a tinha magoado, não percebendo felizmente, na sua
inocência o que concretamente ele lhe tinha feito. Ofélia foi logo ter com Rosa
a contar o que tinha acontecido com a filha e combinaram como iam proceder.
Primeiro dizer a Joaquim para partir e só depois contar a Ricardo.
A
reacção do pai foi tempestiva e exaltada, como era espectável. Decidiu, que
Luísa ia partir de imediato para casa dos avós paternos na metrópole. Aceitou a
contra gosto que a sogra, Inês, viesse para a sua casa para fazer mais
companhia à filha que lamentava e não queria a partida de Luísa.
Foi
quase um ano de desgosto, sofrimento e nem a companhia da mãe Inês a ajudava a
superar a separação da filha. Foi o pior ano da sua vida. Além disso o marido
isolava-a de todos os conhecidos e nem o simples acto de conviver, fora da
escola, com as professoras e professores, ele tolerava. Somente tinham esporadicamente
algum contacto e convívio ao fim-de-semana com um casal que trabalhava na
rádio.
O
que pareceu um período interminável acabou com a chegada da filha Luísa. Vinha ainda
mais magra, mais distante, mais triste. A estadia fora de casa não tinha
ajudado nada à recuperação da criança.
Mas
chegou com um pedido difícil de concretizar. Queria ter um irmão. Foi tão
persistente no pedido que os pais, talvez por não terem a consciência limpa
pelo que lhe tinha acontecido há um ano acederem a conceber um irmão. Não foi fácil
para ambos, pois eles encontravam-se arredados de actos sexuais há algum tempo.
Mas conseguiram satisfazer o pedido irrecusável de Luísa.
Nasceu
o João que era tal e qual a cara da mãe e da avó.
Foi
tratado pela irmã como se fosse um boneco, ela que nem gostava de brincar com
bonecas. Ela, a avó Inês, e a empregada Ofélia, foram quem cuidou dele nos
primeiros anos de vida. Rosa tinha repetido o comportamento de quando tinha
nascido a filha, e uma semana após o nascimento do filho, já estava de volta ao
trabalho na escola.
Aquele
afastamento completo do pai, e parcial da mãe, por se dedicarem excessivamente
às suas escolas, levou a que os filhos nunca tivessem sentido em crianças e na sua
juventude, um grande carinho e afecto da parte deles. Luísa estava mais ligada
à avó Inês e João a Ofélia.
A
relação com os outros avós paternos só se estreitou mais quando, vindos de
África, Rosa e os filhos foram viver para casa dos sogros por não terem
habitação própria nem capacidade financeira para tal. O período de dois meses
antes da chegada de Ricardo foi um inferno, por se sentirem indesejados em
casa. Abrandou depois, mas as relações pessoais continuaram difíceis. Ao João,
com tenra idade, não era permitida qualquer tipo de brincadeiras. Naquela casa
nunca tinham vivido crianças.
Rosa,
quando voltou de África, e antes da chegada do marido, tentou reencontrar o
professor da sua paixão reprimida. Queria saber se seria possível ter o apoio
dele para uma mudança radical de vida. Só que da escola onde leccionava
anteriormente já tinha saído e não lhe conseguiu encontrar o rasto. Fez várias
tentativas junto de diversas colegas que sabiam da sua admiração pelo professor,
mas também não foi bem-sucedida. Esta procura infrutífera deixou-a num estado
de profunda tristeza e a caminho de uma depressão só adormecida quando voltou a
trabalhar.
Passados
uns anos, durante a juventude dos filhos, provocado também por ter havido uma
maior disponibilidade temporal e proximidade física, Rosa passou a dedicar mais
atenção aos filhos. Tal veio reflectir-se num maior conhecimento dos desejos e
anseios deles e numa maior afectividade até aí não partilhada. Compensou assim também
o afastamento que continuou do marido. Era uma situação típica dos casais naquela
época, em que apesar de incompatíveis, só viviam juntos por causa dos filhos.
Rosa
era enfermeira pediátrica, trabalhando em horários rotativos, apesar do marido
não gostar muito que ela estivesse fora de casa. Quando, por opção de saúde, e
a conselho médico, deixou de trabalhar dedicou-se a uma instituição ligada ao
ensino. Também esta actividade deixava Ricardo inquieto, quando semanalmente
dedicava algumas horas e estava ausente de casa.
As
dificuldades de relacionamento entre os pais de João e Luísa foram-se mantendo
durante toda a vida de ambos e eram do conhecimento da filha, através de
confidências de Rosa. Os irmãos falavam por vezes entre si sobre este tema mas eles
não viam saída para a situação existente.
A
certo momento os filhos achavam que a mãe não andava bem psicologicamente e
como se aproximavam os cinquenta anos de casados dos pais quiseram organizar um
jantar onde apareceria a família e os poucos amigos que tinham ou tinham tido,
alguns afastados há bastantes anos.
Organizaram
uma festa inesquecível, mas não foi pelo que motivo que pensavam. Quando no
final do jantar apareceu o champanhe para celebrar a relação de tantos anos de
vida, a mãe disse que queria dizer umas palavras, e sem que ninguém o esperasse
informou que aquele dia tinha outro fim que era o de dar a conhecer a decisão
que tinha tomado naquela mesma manhã, que era separar-se e divorciar-se do
marido Ricardo. Finalmente tinha conseguido, não sem bastante custo e guerras
interiores, libertar-se da teia.~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Vidas Cruzadas
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