Ficção

 
 
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Vidas Cruzadas

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Vidas Cruzadas 1 
 



O João nasceu em África, numa época em que tudo parecia um paraíso aos seus olhos de criança.
Nem mesmo as histórias que a mãe, a avó, a irmã e a dedicada empregada lhe liam carinhosamente para dormir melhor, ultrapassavam a realidade que ele vivia. Talvez só mesmo a Alice, aquela do País das Maravilhas, conseguia ser mais sortuda.
Muitos anos mais tarde, na sua meia-idade, e fruto do bichinho que os pais lhe criaram do gosto pelo cinema, o João iria encontrar um actor tão ou mais feliz que ele na sua meninice, Johnny Depp, nos filmes de Tim Burton como Charlie e a Fábrica de Chocolate ou Eduardo Mãos- de-Tesoura.
Quando todos já dormiam, e pensavam que ele já estaria num sono de criança, naquela casa mesmo em frente à praia, levantava-se e, sempre a dormir sentava-se nas escadas e misturava a realidade com o imaginário das histórias.
 
Era a Cinderela- A menina que ele esperava, todos os dias à janela, que passava para a escola, sempre saltitando, protegida pela mão da mãe ou pelo ar austero do pai. Que pena aqueles dias em que os pais ficavam em casa, e diziam que não trabalhavam, por ser fim-de-semana. Mas o João não entendia o que era isso. Só sabia que nesses dias, não via aquela menina dos seus encantos.
Era o Peter Pan- O rapaz que encontrava no jardim e gostava de voar no baloiço do jardim, onde aprendeu a andar de bicicleta e pela primeira vez brincou com uma bola, que não tinha em casa.
Era o Bambi- O carneirinho mimoso e fofinho, do vizinho do lado que pedia uma festa sempre que o via.
Era o Rezingão- Um dos sete anões da Branca de Neve. O senhor do seu tamanho que estava todos os dias, à porta do mercado, a querer vender a sorte aos outros esquecendo-se de si próprio.
Eram a Bela e o Monstro- O casal que morava no mesmo bairro. Ela era linda e com um ar muito cândido e maternal e ele fazia lembrar um orangotango, com mais meio metro de altura e cara de poucos amigos.
Era um dos ladrões do Ali Babá- O mariola que com ele brincou com os berlindes, e quando se distraiu na sua rua, por o terem chamado para lanchar, meteu-os no bolso e desapareceu para sempre.
Era o Velho, o Rapaz e o Burro- O avô que lhe tinha dado os berlindes e o sentava alternadamente na sua perna esquerda e direita, para fazer cavalinho e quando ele perguntava que bicho era aquele da história, lhe dizia que ali não havia aquele tipo de bicho, que provavelmente só havia de conhecer as suas orelhas quando fosse para a escola.
Era o Patinho Feio. O cisne de uma cor desagradável à vista e que era marginalizado pelos outros apesar de dançar no lago, com mais graciosidade do que todos.
Mas, depois, quando o João estava embrenhado e embalado por estas histórias fantásticas, surgia uma das mulheres da sua vida e levava-o de volta para a cama onde ficava acordado a ouvir a chuva que batia na janela, aberta por cima da cama, e o salpicavam. Ainda hoje João tem na memória, talvez a recordação mais antiga da sua vida, esta sensação de vários sentidos, o som da chuva nos vidros, a frescura agradável dos pingos na cara.
João, de apelido Menino, cresceu e foi para a escola. Era uma escola especial, pois apesar de na sua rua brincar sempre com meninos de todas as cores, aqui tinham todos a mesma cor. Perguntou aos pais porquê. Explicaram-lhe que apesar de viverem todos no mesmo sítio, havia uma coisa chamada dinheiro que cada um tinha em diferentes quantidades o que fazia depender o poder ir para esta ou aquela escola. Era mais ou menos como os brinquedos que ele tinha muitos e havia meninos que não tinham nenhum. Só aí o João percebeu porque é que os berlindes tinham desaparecido.
 
A partir daí, quando partilhava os brinquedos com os meninos que apareciam para brincar com ele na sua rua, passou a dar-lhes alguns dos seus, para eles levarem para casa e brincarem com os irmãos.
Na escola conheceu as letras que se podem arrumar de várias maneiras e fazer palavras tão diferentes, como amor, roma, mora, ramo, romã, todas com as mesmas letras. Encontrou-se também com os números, que são poucos, mas todos juntos podem significar muito.
Perguntou à professora, aquela senhora que lhe lembrava a avó que só conhecia das fotografias que chegavam num envelope de muito longe, como era possível com tão poucas letras e números fazer tantas coisas. Ao que ela lhe disse que em todo o mundo, uma coisa redonda e grande onde nós estamos, as palavras se podem escrever de vários modos que se chamam línguas e que nem todos usamos as mesmas. Afinal era mais complicado do que ele imaginava. Enfim, coisas dos crescidos!
Na escola todos os meninos eram colegas, mas só alguns eram amigos, pois partilhavam os mesmos sonhos e gostos, como o Mickey, o berlinde, a bola e os patins. Começou a perceber que as meninas eram muito diferentes e gostavam de outras coisas como bonecas, brincar às casinhas, às enfermeiras e falar pelos cantos aos ouvidos umas das outras atrás das mãos que escondiam as bocas.
Também lhe ensinaram muita coisa que ele tentava guardar na cabeça, para quando precisasse mais tarde. Apercebeu-se que apesar de a professora ensinar o mesmo a todos, nem todos tinham a mesma capacidade de arrumação. Havia alguns meninos que como justificação para isso, diziam que o cérebro lhes fugia e tinham dificuldade em agarrá-lo e que a professora tinha de os ajudar a apanhá-lo.
Uma vez a professora contou a história da Carochinha e os seus amigos passaram a chamar-lhe João Ratão por acharem que ele gostava muito da Maria Carocha, por lhe ter dado uma flor e aquele berlinde da mesma cor dos olhos dela. Ele até gostava mais de ser Ratão, porque o nome Menino, pensava ele, não o deixava crescer tão depressa como desejava. Quando falou nisso em casa, os pais disseram que o nome é uma das coisas que fica agarrado a nós para toda a vida e que só as meninas quando são grandes podem ter outros nomes. Aí ele percebeu e teve que aceitar que ia ser Menino para sempre.
 
 
Num dado momento os pais disseram que iam viajar, no seu carro a que chamavam carocha, pois o país onde estavam era imenso e podiam andar semanas sem parar. Nessa viagem encontrou pacaças, elefantes, leões, crocodilos, hienas, cobras e toda uma série de outros bichos que só vira nos livros. Reparou num comboio que apitava a cumprimentar os homens e mulheres que estavam a trabalhar no campo a apanhar algodão, café ou mandioca. Ficou a conhecer umas plantas que vivem no deserto com um nome estranhíssimo, Welwitschia mirabilis, e que têm cores diferentes se são masculinas ou femininas.
Chorou quando ao atravessar um rio a água era tanta que passava por cima da ponte entrando por uma porta do carro e saindo pela outra, numa zona onde estavam afogados camiões à espera que a chuva parasse.
Depois, como as estradas estavam cortadas, pois não parava de chover havia três semanas, voltaram para casa, com o carro na barriga de um barco. Foi uma viagem de dois dias, muito alegre e divertida, com muitas brincadeiras e jogos para enganar o tempo da viagem e chegar mais depressa.
Um dia, os pais dos meninos de outra cor revoltaram-se por os seus filhos não terem algumas coisas, incluindo brinquedos. Assustaram toda a gente com uns tiros como nos filmes de cowboys, só que sem cavalos e sem xerifes. Os pais explicaram-lhe que não sabiam o que ia acontecer a seguir, mas era natural o que se estava a passar, pois não era possível continuar tudo como estava. Já havia outros lugares, onde falavam outras línguas, e onde tinha acontecido a mesma coisa e era uma questão de tempo chegar ali o que eles chamavam “a revolta”.
  
Passado alguns dias, quando chegou da escola, começou a ouvir a mãe a chorar que, com dificuldade, por as palavras se enrolarem na boca, disse a João e à irmã que o pai ainda ficava mais uns tempos para encaixotar as coisas, mas tinham de partir rapidamente para a terra longínqua onde os pais tinham nascido e que iriam morar com os avós que João não conhecia.
Foram de barco, mas desta vez, João não entendia porque quase não havia homens, só praticamente mulheres e crianças. Apesar de haver muitos meninos e meninas e até a Cinderela, dos seus sonhos, as brincadeiras eram tristes por irem ao encontro do desconhecido.
O único momento mais alegre na viagem foi quando atravessaram o Equador. Houve uma festa e pediram autorização a Neptuno para atravessar aquela linha que ninguém viu, mas que dividia o mundo. Parecia o Carnaval sobre a água, onde até os golfinhos dançaram com saltos e cambalhotas. Depois voltou a tristeza, só quebrada quando viam terra ao longe e tentavam adivinhar o seu nome, que país seria aquele, e quanto tempo faltaria para chegarem às suas novas casas.
A viagem terminou num dia de manhã quando acordaram e se aperceberam que estavam a entrar num rio. Havia por todo o barco uma azáfama a pôr tudo o que traziam nas malas e nos sacos com que tinham partido, duas semanas antes.
O barco encostou num local onde as pessoas espalhadas no cais vestiam mais peças de roupa, muito diferentes das que conheciam e de cores escuras. Algumas delas tinham na mão papéis com nomes escritos, querendo assim identificar mais depressa, por quem esperavam e que por vezes nem conheciam. Outras, nas folhas brancas que levantavam acima das cabeças escreveram Braga, Viseu, Chaves ou Évora, havendo algumas com nomes elegíveis. Aqui e ali viam-se vários carros azuis a dizer “Polícia” e mais afastados alguns carros pretos de tejadilho verde.
Quando finalmente poderam sair do barco criaram-se situações diversas. Uns, apesar de saberem que não tinham ninguém à sua espera olhavam para todo o lado perdidos procurando um olhar amigo que os reconfortasse à chegada a uma terra desconhecida. Alguns dos passageiros sabiam que alguém os esperava mas não os encontravam porque o afastamento de bastantes anos tinham originado alterações físicas que não os permitia reconhecer. 
Houve muitas pessoas que se viram pela primeira vez. Apesar de terem laços familiares, havia novas gerações que não se conheciam.
Foi o caso do João e da irmã. Ainda no cais, conheceram uns primos que se tinham acabado de casar e em que ela transportava na barriga, mais um primo ou prima, que nasceria dentro de meses. Foram recebidos de braços abertos pelos tios que tinham vindo do sul só para os reverem e desejar-lhes boas-vindas.
Estavam também umas pessoas de mais idade que com um ar seco e frio abraçaram de fugida a mãe de João e fizeram uma festa na cabeça da irmã. Eram os avós, em casa de quem iriam morar temporariamente, até poderem ter casa própria.
Estes avós vinham substituir os que tinham ficado para trás, lá longe, e eram tão diferentes no afecto e carinho que expressavam.
  
Como tinham viajado inesperadamente, foram com as poucas malas que traziam para a casa enorme dos avós do João. Era estranho ir viver para um andar, num prédio de vários pisos, sem jardim, donde não se via nenhuma praia e onde ao abrir a janela recebiam um clima tão diferente daquele a que estavam habituados. A agravar tudo isto o pai só iria chegar dois meses depois, após tentar minorar os prejuízos de uma partida tão apressada da família com um mínimo de pertences.
Para o João, com os seus poucos anos foi uma grande mudança de vida. Mas para a irmã, no auge da sua juventude foi muito pior. Separara-se de um primeiro namorado que tinha e de quem gostava apaixonadamente. Tiveram os dois que conhecer um novo mundo. Passaram a ter frio numa estação a que chamavam Inverno e no dia de Natal não podiam ir à praia como sempre faziam anteriormente. As casas eram mais altas com muita gente lá dentro que por vezes nem se conheciam. A vida era toda mais a correr, sem se perceber bem para quê ou para onde. As pessoas eram menos calorosas, menos calmas, menos fraternas e conviviam pouco.
Todos os companheiros de viagem no barco tentavam reencontrar-se como forma de reviver um ambiente e um passado que tinham deixado para trás e que tinham dificuldade em esquecer e resistiam a apagar da memória.
Mas esses tempos nunca mais voltariam. Passado uns meses tiveram de aceitar que aquelas eram as suas novas vidas.
O mesmo teve de fazer Ofélia, a dedicada empregada que tinha ido para África com os pais de João e que tinha voltado no mesmo barco que a família regressou. Voltou para a sua antiga terra, que tinha deixado por um desgosto de amor muitos anos antes, perdendo o contacto com os seus meninos que ajudou a criar e que substituíram os filhos que nunca teve.
A mãe de João, Rosa, continuou a cuidar dos outros, só que antes era professora primária e tratava do ensino e da formação de crianças e passou a tentar dar uma vida melhor como enfermeira pediátrica, muitas vezes esquecendo-se de si própria.
O pai de João, Ricardo, que também tinha sido professor, passou a trabalhar numa fábrica de tecidos e fez por ultrapassar a sua frustração por não ter acabado o curso de medicina, que era a sua vocação, e pela segunda vez deixar os sonhos para trás, para bem da família.
A irmã de João, Luísa, mais tarde, abandonou a ideia de ser advogada e passou a dedicar-se às artes, em grande parte por influência das notícias que chegavam da Europa.
O João teve que reaprender nomes de rios, de cidades, de linhas férreas e até de estações do ano, apagando o cacimbo.
A família do João foi recomposta com o aparecimento de novos avós, tios e primos. A mãe tentava reaproximar-se de amigos da experiência africana, mas era sempre contrariada pelo pai que queria fechar aquela porta para sempre. Foi sempre uma coisa que eles nunca conseguiram resolver bem nas suas cabeças. Mas para os dois filhos foi muito mais fácil pois as memórias eram bastante mais pequenas e a adaptação foi mais simples.
A irmã passou a ter novas e fulgurantes paixões e amizades profundas que a acompanharam para sempre e que tornaram a sua vida intensa.
O João apaixonou-se pela primeira vez quer por causas que o entusiasmavam, quer por novas Cinderelas, e apesar de tímido e introvertido, tornou-se num pinga-amor, para compensar o pouco afecto que teve em casa e que tinha perdido quando a empregada que o criara, ficou longe dele para sempre.
Muitos anos mais tarde, o amor da sua vida comentou com alguma razão, que se notava que na infância do João lhe tinham faltado mimos, provavelmente porque os pais tiveram uma vida muito dedicada aos filhos dos outros e sempre com falta de tempo para os que lhe estavam mais chegados.
Mas quer o João quer a irmã compensaram essas faltas de afecto com o empenho no trabalho e nos amigos e foram sempre sendo cada um ao seu modo apaixonado e feliz, com alguns períodos piores, mas que eram largamente compensados pelas suas realizações pessoais.
A irmã num período em que o seu “novo” país parecia não andar para a frente, partiu para outras paragens onde procurou libertar-se de um país fechado e obscuro e abrir novos horizontes.
O João ficou com menos cumplicidade e companheirismo mas compreendeu a necessidade que a irmã tinha de partir. Curiosidade que também teve, mais tarde na adolescência, quando foi ver novas vidas e culturas quando, com os seus dois melhores amigos. Viajou com uma mochila às costas, pela Europa fora, com um InterRail no bolso.
Após essa aventura de Verão por novos mundos e em que o João transformou a companheira de viagem na sua primeira namorada, passaram ambos a frequentar uma praia da outra margem do rio que divide a cidade. Era um local isolado e sossegado onde podiam explorar melhor os seus sentimentos recíprocos.
Curiosamente é a praia que ainda hoje ele frequenta e por onde viu passar uma ou duas gerações.
Todas as épocas balneares é um local de reencontro com várias personagens.
A Joana que conhece desde que era um bebé de colo, até hoje que é uma jovem senhora. Já não é a menina traquina que brincava sempre com os outros meninos, por sentir a falta de um irmão que nunca chegou a ter por a mãe se ter divorciado ainda durante a gravidez. A jovem seguiu as pisadas da mãe e continuou o sonho dela e na praia brinda todos com uma bela exibição de cambalhotas, flics-flacs, saltos mortais e outras graciosas acrobacias. Tem um corpo esguio que irá preservar se continuar nos seus exercícios e se não se desleixar pela intensa vida profissional e familiar, que não lhe permitirá olhar pelo seu bem-estar. A ginasta intervala os banhos de mar, sempre acompanhada pela mãe, e as suas demonstrações de agilidade, com leituras muito atentas de livros policiais.
 
Os Melgas que falam muito alto e que toda a praia percebe que são professores pelas conversas que têm e pelo ar autoritário e assertivo com que falam constantemente. Começam a época de banhos, cada um com o seu chapéu de palha, qual deles mais queimado, gasto e a desfazer-se, a falar da desgraça de alunos que tiveram ele a matemática e ela a português. Como é possível os jovens entenderem o que é dois e dois, se não percebem português e falam como se estivessem a enviar sms’s. E o que é isso das chamadas redes sociais se eles não falam, nem convivem pessoalmente com o amigo que está mesmo ao seu lado, mas só comunicam através das suas máquinas viciantes. Até chamam ao seu tipo de comportamento: “estar a socializar”. Cada ano que passa, têm mais queixas do(a) ministro(a) da educação que dizem ser um(a) burocrata que quer quantificar o impossível esquecendo o empenho e dedicação dos professores à nobre causa da educação e à formação das novas gerações.
O Cromo que é um personagem que fascina e espanta toda a vizinhança, pelo seu comportamento. Estende a toalha sempre na mesma posição e sacode dela a areia com um piparote certeiro, como se estivesse a jogar aos berlindes. De seu nome Alcides Mangas, nome pouco sonante, mas que insiste em dizê-lo, alto e em bom som, sempre que atende o telemóvel colocado a 5 cm da parte de cima da toalha. Também geometricamente pousado, e também do lado direito, está o creme solar igualmente a 5 cm da parte de baixo da toalha com cores berrantes comprada na feira ou eventualmente na loja dos chineses. Do lado esquerdo e à mesma distância dos limites tem um Iphone, onde antigamente punha um rádio a pilhas. Mais perto dos pés, está uma garrafa de água de plástico, da qual bebe de cada vez dois goles de uma água amarelada. A toalha está estendida no sentido oeste para este e a utilização da água, creme, telemóvel e fones segue uma sequência sempre igual e doentia. Por vezes, ouve-se um bzzzzz, e aparece uma vespa que o distrai e lhe baralha a sequência das manias e perturba-o de tal modo que vai à água para se acalmar. Quando volta, refrescado, retoma a sequência das obsessões, o que o descontrai de imediato.
 
O Banheiro passou a Nadador-Salvador e parece estar sempre com sono. Com uma bóia, por perto e um apito pendurado ao peito, tinha sempre disponibilidade para conversar com os pescadores que com as suas canas e os seus barcos puxavam para terra o peixe que muitas vezes lhe servia de refeição. Foi substituído por uma jovem com uma prancha de surf e uma mota de água. Hoje os barcos de pesca só passam ao largo e os pescadores de terra desapareceram para outras paragens e portos longínquos.
A praia é invadida por milhares de crianças de todas as idades que nas férias vêm aproveitar a oportunidade que muitos dos seus pais não tiveram de conhecer e se refrescarem no mar. Como filas de formigas, organizadamente, dirigem-se à água, sempre acompanhadas pelos seus protectores. Jogam à bola com os educadores, dispõem as toalhas em círculo, ou em filas paralelas, onde comem a sandes e bebem os sumos que trouxeram nas mochilas.
 
A Barbie, aquela loura platinada e esquelética, que acompanhada de um senhor com aspecto de ter pelo menos mais 30 anos de idade que poderia ser marido mas parecia pai, estavam logo à entrada da praia. Ele debaixo de um guarda-sol de cores espampanantes e ela na torreira do sol, com o seu biquíni minúsculo de cor a condizer, mas a mostrar as operações plásticas de recauchutagem já feitas, toda besuntada de creme e a folhear, por detrás dos seus óculos de marca, revistas cor-de-rosa e de telenovelas.
O Estrumpfe agora renomeado Smurf, aquele velhote com uma barriga proeminente que esconde as partes baixas e frequenta a zona de nudismo que hoje é de naturismo, está na praia ao lado. Sempre se apresentou como veio ao mundo, apesar da sua figura arredondada, pesada e disforme mas que nunca se incomodou com os voyeurs de todo o tipo que espreitam nas dunas e que são qualquer coisa não assumida.
 
O Arrumador do parque de estacionamento que cumprimenta amigavelmente todos os que chegam, apesar dos óculos com lentes fundo de garrafa só lhe permitirem ver uns vultos. Com um chapéu com uma chapa amarela tão gasta onde já não se consegue ler nada, tenta arrumar os carros que vão chegando como se fosse a espinha de um peixe. É uma testemunha de pelo menos três gerações de frequentadores daquela praia e ainda hoje conserva o mesmo guarda-sol, mesinha e cadeira na entrada da areia.
O Coronel e sua família. Todos de pele escurecida, envelhecida e enrugada, dadas as longas horas que se estendem à torreira do sol. Chegam com uma mala frigorífica, comprada num supermercado, cheia de sandes e garrafas de água gelada, que poem debaixo de um guarda-sol onde nunca se resguardam. Pai e filha baixos, de pernas arqueadas e caras fechadas com rugas vincadas, aparentam ter mais anos do que realmente têm. Todos têm um corpo reflexo de uma ginástica em excesso de que tapam algumas partes com fatos de banho com pouco tecido. A mulher, com as mesmas características físicas, praticamente não fala durante todo o dia, limitando-se raramente a acompanhar um e outro nas idas ao banho de mar.
 
Os reformados da Graça, aquele grupo da terceira idade, que aproveitando a oportunidade dada pela Junta de Freguesia, se deslocam à praia por vezes acompanhados, ou melhor acompanhadas dado serem quase todas mulheres, pelos netos, em que os pais estão a trabalhar e depois de escolas e ATL’s fecharem, não têm sítio para os deixar durante o dia. São comandados pela voz de uma idosa com voz de estridente de sargento que ordena a partida às 12 horas em ponto, apesar de ser sempre a última a chegar ao autocarro. No último dia de praia organizam um piquenique farta brutos em que cada uma tenta mostrar ao grupo os seus melhores fritos e doces que lhes provocam todas as maleitas de que falaram em todos os dias de convívio.
Mas o João conheceu também um casal, desde o primeiro dia que frequenta aquela praia e que ao fim de 30 anos mantêm um ar de cumplicidade e apaixonado como no início. E isso fá-lo pensar como gostaria de conhecê-los melhor para saber qual a receita para esse encantamento permanente. Hoje, timidamente, já lhes diz bom-dia ou boa-tarde, mas nunca ganhou coragem para se aproximar deles e estabelecer uma relação mais próxima que lhe permitisse partilhar as alegrias de serem vizinhos sazonais desde longa data.
 
Certo dia, em que a praia tinha uma enchente, dado o óptimo clima que se verificava, após uma série longa de dias frios, o João foi para um local menos habitual e, sem querer, ouviu uma conversa entre dois casais com filhos que entretanto embirravam amigavelmente uns com os outros junto à água.
Nesse diálogo, faziam uma descrição do percurso do tal casal, com uma receita de vida misteriosa, a uma outra pessoa das suas amizades que entretanto chegara. Como primeira curiosidade ficou a saber que as crianças, netos desses casais tinham todos seis avós, dado terem tido todos dois casamentos e ambos terem constituído segundos casais. Todos os seis avós davam-se bem e comemoravam em conjunto os aniversários dos mais pequenos, numa relação franca e aberta que espantava quem estava de fora. O casal que intrigava o João era portanto o segundo casamento da Maria e do Francisco em que os filhos eram dela mas que quer eles quer os netos o tratavam como se fosse o pai e o avô genético.
 
O Francisco, que também tinha vindo do mesmo país que o João teve um percurso semelhante ao seu. Veio embora de África mais ao menos na mesma altura e, tal como ele, não guardava rancor nem mágoa sobre o que se passara no país onde nascera e que precipitara a sua partida inesperada.
Também ele gostava de ter tido filhos mas tal nunca se proporcionara e passou para os seus enteados todo o amor e afecto que lhes estava destinado. Tratou-os sempre como se fossem seus filhos e esse relacionamento franco fez com que ainda hoje ele tenha uma paz que demonstra na sua postura, estado de espírito e modo de vida. Mas esse comportamento também teve a ver com o facto de ter encontrado na sua mulher uma alma gémea que se manifesta em emoções comuns e partilhadas, em projectos e sonhos conjuntos, em apoio mútuo nas horas mais difíceis que já atravessaram.
O João revê-se naquele casal pois parece-lhe um reflexo da sua realidade.
Normalmente, a vida de uma pessoa cruza-se com outras em que há pontos em comum quer de interesses pessoais, de perspectivas de vida, ou de sentimentos. As amizades aproximam-se e afastam-se no tempo, e, por vezes, quando se reencontram mais tarde parece que já nada tem a dizer pois entretanto passaram por vivências que os levaram por caminhos divergentes. É o contrário do que acontece noutros momentos em que se reencontra alguém que muito se estima e que já não revemos há muito tempo e queremos apressadamente por a conversa em dia, como se fosse possível recuperar o tempo perdido com o afastamento.
 
Ambos, João e Francisco, se tornaram padrinhos à distância de jovens africanos, através de uma ONG que conheceram a partir de uma reportagem na televisão, tentando assim colmatar o facto de não terem deixado sementes naquele continente. É também um modo de não perder o cordão umbilical que o pai sempre quis cortar mas que a mãe tentou preservar a todo custo. Enviavam roupa, lápis, cadernos e outros bens essenciais para um mínimo de qualidade de vida daquelas crianças que não tiveram a mesma sorte na vida que eles. Faziam isso sem se vangloriarem, pois estava no modo de ver e de encarar a vida que lhes tinha dado o país onde nasceram que tem aquela terra ocre, o pôr-do-sol inesquecível na baía, as chuvadas torrenciais no pino do calor, o tempo para tudo…
Os dois, João e Francisco, tiveram a oportunidade profissional de regressarem às origens, cada um dando um contributo com os seus conhecimentos para enriquecer aquele povo que tinha sido tão maltratado, mas uma guerra inexplicável de interesses tribais e de ganância pessoal impossibilitou no último momento a sua concretização. Talvez tenha sido melhor assim pois ficaram sempre com as imagens que tinham na memória daquele paraíso vivido na infância, e não viram a destruição material e física que houve depois da sua partida.
 
Numa conversa ouvida por acaso, o João ficou a saber que têm pontos em comum pois continuaram o caminho dos pais. O João é professor do ensino básico e o Francisco, também o queria ser e acabou por ser enfermeiro num hospital pediátrico que recebe muitas crianças de origem africana.

Entretanto eis que chega ao mesmo grupo um jovem casal que entusiasmado conta que tinham regressado de uma viagem de trabalho de seis meses naquele paraíso africano e que deveriam convencer o pai Francisco a voltar para ver como diferente e moderno está o país que entretanto se tornou independente, moderno e em fulgurante progresso.
Quem primeiro ficou entusiasmado foi o João que por estar muito perto ouviu a conversa e naquele momento decidiu ir tratar do passaporte, do visto e da viagem de avião, apesar de não gostar de andar tanto tempo no ar, mas que desejava concretizar um sonho adormecido.
Quando o João estava a imaginar a viagem não reparou naquela senhora de idade que chegou com a Maria e o Francisco. Era uma figura curvada pelos anos e que tinha todo o seu carinho expresso nos bonitos olhos negros e cabelos brancos cheios de caracóis. Perguntou de rompante, na sua voz doce, pelos netos dos senhores pois já não os via há bastante tempo e queria ver como eles estavam crescidos. Eles vieram a correr e aos saltos beijar e festejar o reencontro com aquela outra avó adoptiva de que todos falavam e gostavam tanto.
 
 
De repente o João vira a cara e reconhece naquela velhinha a Ofélia, a sua querida empregada que já não via desde o dia em que se despedira dela no cais no dia da chegada de África. Quando os olhos se cruzaram agarram-se um ao outro e ela não parava de chorar de alegria e de dizer: “olha o meu Menino Joãozinho…”. Os seus caminhos perderam-se e nunca mais souberam um do outro durante todos os anos decorridos.
Enquanto reviviam histórias passadas, Francisco aproximou-se e disse que algumas daquelas histórias também lhe eram familiares e acabaram por concluir que ele e João tinham estado ao mesmo tempo, nos mesmos locais, mas que nunca se tinham conhecido. Moraram em casas separadas por algumas ruas, andaram em escolas vizinhas e vieram no mesmo barco, o Uíge, só que em viagens diferentes.
Acabaram por concluir que os pais tinham uns amigos comuns, apesar dos pais terem muito poucos amigos. Eram aqueles senhores que trabalhavam na rádio e que moravam perto do cinema ao ar livre e que foram presos por defenderem a independência.
Naquele momento ficou combinado, que o João, na viagem ia ter a companhia do Francisco e da Maria e ainda da Ofélia que ficou tão entusiasmada que até rejuvenesceu.
 
O João Menino concluiu que este mundo é uma aldeia grande em que todos se reconhecem mesmo quando não se conhecem, e em que as vidas se cruzam e se descruzam num paralelismo de histórias e de vivências.
 
 


Vidas Cruzadas 2
 
 
 
Luísa é a irmã de João. Oito anos mais velha, também nasceu no mesmo país africano. Foi gerada numa época em que os pais não se estavam a dar bem e pensavam separar-se por o pai ter descoberto umas cartas de amor que um professor da mulher lhe escrevia desde que fora sua aluna, já haviam passado doze anos.
Percebeu que o professor era seu confidente e estava a par de todos os desentendimentos, mal entendidos e desamores que tinham tido desde o casamento. Foram para aquele país, por sugestão dela, para esquecer o amor supostamente adormecido, mas apesar da distância e dificuldade de comunicações tal não veio acontecer, antes pelo contrário.
Os pais de Luísa tinham duas escolas, uma infantil e outra de ensino básico, que eram pela sua inovação nos métodos de ensino e de aprendizagem uma diferença positiva num país ainda tão desfasado da realidade. Eram muito consideradas na cidade por ser umas das melhores escolas pela exigência e não facilitismo com que os alunos eram ensinados, formados e educados.
Tinham, quer no local de trabalho, quer em casa um muito bom relacionamento com todos que trabalhavam com eles, independentemente das suas origens.
Inadvertidamente não se aperceberam que Luísa quando tinha quase seis anos fora violada de noite por um dos empregados de quem todos gostavam mais. A mãe não identificou de imediato o acto violento e achou estranho, apesar de não lhe dedicarem muito tempo, por estarem quase sempre ocupados com os filhos dos outros na escola, que a filha a evitava ou mesmo lhe fugia quando ela se chegava perto. Luísa achava que a mãe não tinha sido capaz de a defender, da agressão de que tinha sido vítima, conforme achava que era sua obrigação.
Quando finalmente a Mãe de Luísa, descobriu passado uns dias, o que se tinha passado, e temendo a reacção violenta do marido, recomendou a partida imediata do violador, e só depois pôs o marido a par do que tinha acontecido.
A decisão que tomaram foi enviar Luísa para a metrópole onde viviam os avós paternos, de forma a tentar afastá-la da memória nefasta do que tinha sido vítima. Foi um segredo bem guardado de todos, pois o que foi dito é que ela se ia embora porque o clima africano não lhe era propício e estava a perder muito peso, parecendo anoréctica.
A solução não foi a melhor porque Luísa, sentiu-se completamente desambientada para onde foi enviada. Nunca tinha conhecido o ramo da família com que agora estava a viver. A situação agravou-se com a chegada do frio a que não estava habituada. Quando raramente falava pelo telefone com os pais implorava, entre soluços de choro, para voltar. Tal veio acontecer passados poucos meses, não tendo completado um ano de ausência de casa.
Quando regressou as zangas entre os pais continuavam, talvez ainda com mais intensidade. Tinham discussões intermináveis em que Luísa fugia para o quarto, atirava-se para cima da cama, tapava os ouvidos com as mãos com toda a força que podia e escondia-se debaixo da almofada chorando sem parar.
Era um martírio continuar a assistir àquelas desavenças. A agravar achava que os pais não tinham cumprido bem a sua função protectora quando tinha sido violada. Convenceu-os que queria ter um irmão. Pensou que esse sim ia protegê-la quando ela precisasse novamente. Quando nasceu o João, Luísa estranhou pois ela era muito morena e o irmão era branco de louro. As feições eram as da mãe e da avó e até tinha duas covinhas ao lado da boca como elas. Luísa era mais morena e escura e parecida com o pai, até assemelhando ter alguns traços de origem indiana, como a avó que conhecera quando estivera na metrópole.
As diferenças de oito anos que tinha do irmão apesar de se notar mais durante os primeiros anos de vida, com o passar do tempo foram-se esbatendo e aproximando-se cada vez mais um do outro.
A partir da idade adulta de ambos uma situação que sempre se manteve foi que, apesar de por vezes morarem até muito perto um do outro, raramente se encontravam. Mas sempre que por alguma razão um dos dois tinha alguma situação mais complicada de gerir, na sua vida pessoal ou profissional, aproximavam-se mais um do outro e apoiavam-se mutuamente, até a situação estar ultrapassada.
Luísa desde pequena, incutido pela empregada Ofélia, de origem transmontana, tinha sido educada sempre com o espírito e o sentido de justiça. Para ela tudo na vida era uma questão de equilíbrio e de valores positivos e negativos. Desde criança era muito pragmática e só existiam os bons e os maus. Não havia as pessoas assim-assim. Todos tinham de estar de algum lado da barreira.
Começou desde pequena, com os bocados de tecido que sobravam da costureira que ia lá a casa, a fazer os próprios fatos das suas bonecas. Não que gostasse muito de brincar com bonecas, porque tinha qualquer coisa de maria-rapaz, até o apelido era Menino. Fascinava-a imaginar os fatos, desenhá-los num molde em papel, cortar os tecidos e cozê-los. Chegou até a fazer, na altura do nascimento do irmão, um bibe com uma tira no peito, de bonecos bordados a azul. A certa altura da sua juventude começou a fazer calças, blusas, túnicas e até fatos de banho para si própria.
Por o seu corpo ser elegante e esbelto e encantada por um espectáculo de ballet que tinha visto em pequena, ainda de tenra idade começou a dançar. Dançou enquanto o corpo lhe deixou até lhe aparecerem dores insuportáveis na coluna e nas pernas, provocadas pela dança em pontas. Naquela época praticamente só havia dança clássica e a chamada dança moderna só apareceria quando ela já tinha abandonado o ballet. Senão teria sido o caminho da sua preferência. 
Esse abandono da dança coincidiu com o momento em que abruptamente teve de partir de África e abandonar os amigos, os colegas e o namorado, de quem gostava tanto. Foi uma mudança drástica de vivências e que a levou algum tempo a adaptar-se.
Com a chegada ao novo continente, onde anteriormente já tinha estado em casa dos avós, tentou reencontrar amigos que também teriam vindo da mesma cidade, mas a procura foi infrutífera, porque tinham ido todos para a mais diferentes vilas, aldeias e cidades, perdendo o rasto deles todos. Sentiu-se ainda mais perdida.
Os pais tinham agora a preocupação de encontrarem empregos e continuavam a não dar muita atenção aos filhos. A mãe começou a trabalhar primeiro que o pai, o que gerou mais alguns atritos no casal. Quando o pai se empregou, numa actividade completamente nova da sua formação profissional, as coisas até acalmaram entre eles e a família encontrou alguma estabilidade que permitiu irem viver para uma casa só deles.
Tinha sido para esta casa, de onde agora saiam, que Luísa tinha vindo uns anos antes para apagar a má memória de criança. A nova estadia ali, só teve de bom porque desenvolveu uma amizade com a avó que não tinha tido na anterior estadia. Já o irmão, nunca foi feliz naquela casa. Apesar do espaço ser imenso, e ele ser criança ainda, o seu espaço para brincar era muito limitado e sempre com chamadas de atenção para não estragues isto, cuidado com aquilo. Teve uma pequena vingança e no dia em que todos se vieram embora, pegou num pau e bateu com ele em todas as sete arcas que estavam no corredor imenso.
O avô tomou como tarefa, quando os dois netos chegaram a sua casa, dar a conhecer bem a sua nova cidade. Pegou neles e levou-os de autocarro e eléctrico a tudo quanto era sítio. Jardins, zoo, lago, museus, palácios, castelo, pastéis de Belém. Só faltou mesmo a Feira Popular, mas o avô não era uma pessoa muito dada a grandes diversões. Mostrou-lhes todos os locais que mais tarde, com a chegada de turistas em grandes quantidades, se tornaram pontos de interesse.
 Ao fim de um ano, a família, ainda em fase de integração, foi viver para uma casa térrea e pequena numa zona de praia que tinha uma semelhança mínima com o país que tinham abandonado. A proximidade do mar era importante para todos, pois davam-lhe uma sensação de liberdade a que se tinham habituado e que queriam reviver e preservar.
Os jovens irmãos continuaram a estudar. João ainda estava nos primeiros anos do liceu. Luísa foi estudar direito, a que não foi alheio o sentimento de justiça que Ofélia lhe tinha incutido. No primeiro ano conheceu um rapaz que lhe fez lembrar de beleza e de feitio, o namorado que tinha deixado longe. Mas não há amor como o primeiro e a relação não durou muito tempo.
Com o passar do tempo começou a ver que o curso que frequentava, não tinha nenhuma afinidade com o sentimento de justiça que defendia. A mesma lei servia para os dois lados da balança e não se estava a ver a defender pessoas e causas que mexiam com a sua maneira de ser, incomodando-a. Começou a desencantar-se com o curso e só se arrastou até ao final dele por ver o esforço de economias que os pais faziam para que ela se mantivesse num curso superior.
Mas após acabá-lo, nas férias, antes de começar o estágio obrigatório num escritório de advogados do tio, conheceu um alemão por quem teve uma grande paixão. Ele só falava a sua língua materna e mal inglês e a comunicação era algo difícil. O pai combateu sempre o namoro e tentava limitar as saídas de ambos, por dizer que aquilo de um alemão ter o cabelo à escovinha e quando cumprimentava as pessoas bater os calcanhares como faziam os nazis, era uma coisa que ele nunca poderia aceitar. Com a partida para a terra de origem o namoro acabou por se esfumar. No dia em que Luísa o acompanhou ao aeroporto cruzou-se com um charmoso francês que estava a chegar. Teria mais quinze anos que ela mas foi uma troca de olhares difícil de esquecer.
Passado um mês e quase no final das férias Luísa vê o francês na mesma praia que frequentava. Vestia um biquíni branco bordado à mão, feito por ela. O senhor aproximou-se dela perguntando-lhe onde tinha arranjado tão bela indumentária. Respondeu que tinha sido feito por ela e que normalmente toda a roupa que usava era de seu fabrico. Ele disse-lhe que era desenhador de moda e que trabalhava para uma das maiores marcas francesas de roupa pronta a vestir. Gerou-se ali naquele momento uma empatia de interesses e as trocas de olhares voltaram, agora mais profundas e intensas apercebendo-se desde aquele momento que tinham um futuro comum a viver.
Com o fim das férias e a aproximação do início da actividade na advocacia, Luísa via-se estar prestes a abraçar um futuro indesejado, oposto àquela oferta do francês para partir com ele e ir trabalhar na fábrica de têxteis a desenhar padrões de tecidos. Não disse nada aos pais, partindo às escondidas, para o estrangeiro e só dizendo onde estava após chegar ao destino. Só o tinha dado a entender ao irmão por meias palavras. A sua afinidade com a cultura francófona e o perfeito conhecimento da língua deram-lhe uma rápida e fácil integração. Chegava ao mundo que conhecia das revistas francesas de moda que tão avidamente folheava.
Os pais tiveram uma reacção diferente. Enquanto a mãe se foi muito abaixo psicologicamente percebendo que nunca tinha dado o devido carinho e protecção à filha, o pai achou que o futuro estava fora do país e que mais facilmente no estrangeiro poderia desenvolver uma actividade de que tanto gostava.
O irmão teve a sua primeira namorada naquele ano e teve pena de não ter perto de si a irmã para partilhar essa nova experiência. Foram meses difíceis, e que custaram a passar até ao final do ano, principalmente à mãe, quando os três a foram visitar. Só quando lá chegaram é que souberam que agora Luísa estava a viver com o francês numa casa-estúdio de artista num bairro típico.
Não se sabendo bem porquê Luísa tinha tido sempre, desde muito nova, uma relação muito difícil e conflituosa com o pai, e talvez por isso, e para não se arreliar, muitas vezes não partilhava com ele certas situações da sua vida, tendo só essa cumplicidade com a mãe. Nem mesmo com o irmão que tinha sido tão desejado, por vezes tal acontecia.
Esteve vários anos como emigrante a trabalhar fora, mas quando a relação amorosa francesa terminou, porque cada um queria seguir uma via profissional diferente, era difícil continuarem a trabalhar no mesmo local e optou por voltar ao seu país.
O problema no regresso eram dois.
O primeiro era não voltar para casa dos pais e encontrar a sua própria casa a ter uma vida independente, como aquela a que se tinha habituado no estrangeiro. Transformou numa casa uma antiga fábrica onde a luz entrava com uma claridade e luminosidade característica da cidade branca por uma clarabóia imensa que se estendia por todo o tecto. Parte da casa passou também a ser o seu local de trabalho.
A segunda dificuldade no retorno foi, dado a grande atraso que as fábricas de têxteis ainda tinham no país, essencialmente por usarem métodos antiquados, tentar encontrar um local onde lhe fosse permitido aproveitar os conhecimentos que tinha adquirido.
Começou por criar os padrões dos tecidos conforme as modas ditavam no estrangeiro, o que era muito avançado para a época. Depois acabou por desenhar os cortes dos tecidos e assim conjugar a beleza das cores com os seus feitios. A roupa do mesmo tipo que se via no país era só a que uns poucos afortunados podiam trazer de fora, nas suas viagens de lazer.
Mas Luísa era uma insatisfeita e uma perfeccionista por natureza. Aquilo ainda não a satisfazia por completo. Começou a ver onde o seu dom poderia ainda ser melhor aplicado.
Descobriu que os espectáculos de dança, teatro e ópera eram um caminho possível. Preparou-se. Estudou história do traje, aprendeu e conheceu com a mãe os nomes dos tecidos (alpaca, angorá, mohair, seda, algodão, linho, viscose, piquet, tafetá, cetim, chita, organdi, lona e veludo) e técnicas de costura (ponto pé de flor, picado, de luva, ziguezague, de casamento, alinhavar, cerzir, chulear) e avançou com uma proposta para um teatro nacional. Como o orçamento era muito baixo daquela peça que estreava daí a três meses, e como era principiante, iriam pagar pouco, mas teve a sorte de ser escolhida para o trabalho. Foi um espectáculo que deslumbrou pela inovação de aplicação dos mais diversos tecidos e feitios dos figurinos. Chamou logo a atenção para si, ela que era de uma timidez enorme e de fugir sempre da exposição.
Mas dado ser uma actividade de ocupação incerta, começou também a dar aulas numa escola onde formavam o que viriam a ser os seus futuros colegas de actividade. Gostava de transmitir aos mais novos todos os conhecimentos que tinha adquirido dos anos que já levava a fazer o que gostava. Incentivava-os a inovar, a arriscar, a experimentar, a serem diferentes. Apercebia-se desde o início quais os alunos que iriam singrar e ter futuro como aderecistas, figurinistas ou cenógrafos. Ensinava-os como trabalhar com as restantes equipas de cada espectáculo como maestros, encenadores, carpinteiros, serralheiros, costureiras, iluminadores. Para tal tinham que saber os nomes dos materiais, das técnicas e nomes específicos dentro de cada área. Não tinha receio que eles lhe fizessem sombra, quando fossem profissionais. Dizia-lhes que hoje ela tinha aquelas características que tentava despertar-lhes, mas nada garantia que no futuro fosse assim. A inspiração e a capacidade de a transpor para a realidade poderiam não durar eternamente.
Neste mesmo período, a nível pessoal, as coisas também corriam de feição. Luisa, sempre achou que as duas metades que completam a vida de uma pessoa, a pessoal e a profissional, andavam sempre em paralelo. Uma acompanhava a outra.
Mas fruto da inveja de colegas incapazes de inovar de espectáculo para espectáculo, o seu trabalho começou a ser denegrido por quem achava que ela tinha vindo quebrar o status quo do meio. Não eram capazes de aceitar uma lufada de ar fresco que tinha chegado a um grupo de colegas conservadores e corporativos. Sentiam os seus interesses ameaçados. Durante um largo período de tempo não teve nenhum novo trabalho para fazer. Restavam-lhe as aulas, ainda por cima num local onde também vegetavam alguns dos seus colegas profissionais.
Este momento coincidiu também com o nascimento de uma filha que apesar de ser desejada, veio ao mundo com uma malformação genética. Era mesmo o começo de uma nova má fase na sua vida. Tinha uma doença rara e praticamente desconhecida e empenhou-se fortemente a descobrir qualquer possibilidade de melhoria da sua qualidade de vida. Consegui-o descobrir num país asiático onde as medicinas orientais tinham chegado a uma solução para a doença minorando-a e facilitando a vida a todos os seus portadores.
A chegada da primeira neta para os avós, foi muito complicada. Queriam compensar nos netos, que provavelmente iriam ter, a pouca dedicação e carinho que tinham dedicado aos filhos e desafortunadamente tinham recebido uma neta com alguns problemas de saúde. Tiveram de esquecê-lo rapidamente porque tiveram de dar um grande apoio à filha. Felizmente o problema ficou bem encaminhado e poderam saborear e acompanhar o crescimento da mais pequena da família.
Luísa aproveitou esta fase negativa, em que mais uma vez se aproximou mais do irmão, para partilhar com ele o segredo do que lhe tinha acontecido em criança, quando quase quarenta anos antes tinha sido violada e ido para casa dos avós. Contou-lhe como tinha pedido aos pais, com muita insistência, quando voltara, que queria ter um irmão, para a proteger. Só naquele momento João se apercebeu da sua verdadeira importância na vida de Luísa, e que se calhar nunca tinha correspondido completamente ao ansiado pela irmã.
Entretanto Luísa regressou a uma nova fase positiva. A filha entrou para o infantário e era uma menina muito alegre e comunicativa, não sendo nada reservada como a mãe. Era uma brincalhona e sempre bem-disposta e pronta para ajudar, vindo a revelar-se mais tarde uma óptima aluna.
As encomendas dos trabalhos de figurinos e cenografia voltaram em tal quantidade que tinha de rejeitar alguns por se sobreporem no tempo. A filha, já mais crescida, ajudava-a em casa a fazer as maquetas e a desenhar os fatos, substituindo os momentos de brincadeira com a partilha e cumplicidade com a mãe.
Luísa continuou a sua carreira de sucesso mantendo a fasquia de qualidade cada vez mais alta até à altura em que deixou de trabalhar.
A filha sem nunca ter sido incentivada a seguir o caminho profissional da mãe, acabou por lhe seguir as pisadas e após um curso de música que parecia estar dentro dos seus sonhos, mas que afinal não correspondia às suas ambições, virou-se para a actividade de Luísa, que tão de perto tinha acompanhado.
A filha de Luísa seguiu um caminho muito idêntico ao que a mãe tinha percorrido. Os tempos já eram outros, mas a insatisfação pessoal e o desejo de ser inovadora e cada vez melhor a nível profissional e feliz nas relações pessoais repetiam-se na jovem mulher.
 
 
 
Vidas Cruzadas 3
  
Naquele dia o João vinha do local onde estava a mesa de voto das eleições que supostamente iam decidir tudo, para afinal ficar tudo praticamente na mesma. Dirigia-se para a saída do Liceu centenário, agora transformado em Escola Secundária modelo do século 21, quando encontrou Rui, um sem-abrigo seu conhecido, que lhe fez uma grande festa quando o viu.
Esta casualidade veio despertar em João memórias algumas adormecidas com poucos anos, outras desde a juventude.
João, desde a sua tenra idade, teve sempre o ensinamento da família de que nunca devemos abandonar os nossos sonhos e tentar realizá-los e que mesmo que por algum imprevisto os sonhos sejam interrompidos, devemos ser como os gatos e ter sete vidas, ou seja, cair de pé, levantar de novo e partir para outros desafios.
Esta lição foi-lhe transmitida, ainda com mais convicção pelos pais, quando de uma situação desafogada financeiramente, de repente, tiveram de abandonar tudo de um dia para o outro que tinham construído em África com os seus sonhos de juventude e início de vida familiar e recomeçarem tudo de novo, do zero, noutro local distante na metrópole.
O tal encontro com o sem-abrigo fez recordar a João o 1º emprego onde ele e Rui tinham trabalhado. Há uma explicação para a alegria do reencontro que aquele pobre desgraçado manifestou. Apesar do Rui ter um pequeno atraso mental, desde que deixou o emprego que lhes era comum, andou sempre mal na vida e esta sempre lhe foi madrasta.
Já quando foram colegas, ele chegava de manhã para trabalhar cheio de sacos com roupa, porque dizia que tinha um quarto alugado e que, na sua ausência, lhe roubavam coisas dos poucos pertences que ainda tinha. Ao fim-de-semana ajudava a mãe nas feiras como vendedor ambulante, percorrendo o país, mas nunca recebendo o carinho de filho.
Rui ganhou uma amizade por João, que não é difícil de explicar, porque este nunca o gozou, brincou ou se aproveitou da sua deficiência mental. Sempre conversou normalmente com ele, sempre o aceitou como ele é.
Das poucas vezes que se viram nos últimos anos, e apesar da necessidade evidente fruto das carências porque passava, Rui nunca pediu dinheiro a João, por uma questão de dignidade que sempre manteve. Bastava-lhe conversar e que lhe fosse dada um pouco de atenção para ficar feliz, aliviado e renascido.
O Rui, nem sempre foi sem-abrigo. Teve algumas fases melhores na vida. O pai era pescador e a mãe era agricultora, num terreno baldio perto de casa. Para sustento próprio e dos três filhos, pois o marido passava longos meses na pesca do bacalhau, e para ganhar mais uns dinheiritos, também lavava roupa para as vizinhas. Estas eram umas más-línguas, sendo a sua actividade predilecta a coscuvilhice e especulação sobre as vidas dos outros. Como, daquela casa de uma mulher com três filhos, não sabiam onde o marido andava por longos períodos pensavam que ali havia qualquer coisa escondida.
Mas a única coisa de que evitava mesmo falar, era do filho Rui, o mais velho, que lhe tinha dado problemas no parto e que revelava alguma dificuldade no relacionamento com os outros.
A mãe de Rui isolava-se o que era possível porque não gostava de falar do sofrimento que transportava dentro de si, pois quando chegado da pesca, o pai de Rui passava as tardes na taberna e depois descarregava nela todas as frustrações da vida.
Havia um vizinho viúvo, também feirante, que sem ter nenhum interesse pessoal e só por achar que aquela mulher não merecia a vida que levava lhe disse que quando precisasse de alguma coisa era só dizer.
Essa oferta de ajuda foi utilizada, quando na véspera da chegada do barco do Mar do Norte, ela decidiu finalmente que tinha de deixar para trás aquela vida, juntamente com o filho Rui, o irmão e a irmã. Ao aceitar a ajuda oferecida pelo vizinho, este disponibilizou-lhe a carrinha velha que já não usava para as suas viagens, com o depósito cheio, que lhe permitiria afastar-se até 400 km do inferno vivido. Aceitou sem hesitar e prometeu que lhe devolveria a carrinha, assim que pudesse.
Tal nunca chegou a ser possível pois a vida da família nunca chegou a melhorar. Começou a vender em feiras roupas para vestir e atoalhados para casa que comprava nas fábricas têxteis em decadência.
Dormiam os quatro na carrinha, em cima de uns cobertores velhos que cobriam a roupa para venda. Lavavam-se nas casas de banho públicas, nas terras por onde iam passando. Comiam o que o dinheiro das vendas diárias nas feiras lhes permitia.
No período inicial de três anos a situação ainda correu de uma forma aceitável e mesmo não estando tudo conforme era desejado, havia comida todos os dias, pelo menos para uma das refeições. Por vezes, até era possível fazer alguns gastos extras. Mais tarde a concorrência ficou feroz da parte dos ciganos que apareciam como cogumelos nos mesmos locais de venda. Agora faltava-lhe o que tirava da terra para poder alimentar os filhos e que era um valor importante que só era pago com o seu trabalho e suor.
Certo dia, a filha de 16 anos apareceu grávida e logo de seguida fugiu com um rapaz moreno e bonitão, colega de negócio que tinha conhecido numa feira no norte do país. Nem parecia bem uma mãe pensar isto, mas apesar de tudo, foi um alívio inexplicável. Sempre era menos uma boca para alimentar.
Ficaram os dois rapazes. O irmão do Rui, mais novo, era um revoltado por quase não ter conhecido o pai, de tão prolongadas eram as suas ausências. Começou a fazer pequenos delitos onde predominavam os roubos por esticão a idosas, furtos nas mercearias ou as carteiras dos clientes das feiras.
Passado algum tempo já pertencia a um gangue que roubava automóveis, assaltava casas, indo ainda muito jovem para uma instituição de reintegração social. Posteriormente foi preso pelos mesmos delitos e andou agarrado a drogas vindo a morrer na cadeia, numa desavença entre grupos rivais. Também nessa altura a mãe dizia que era um descanso quando o filho estava preso pois não andava a roubar coisas a pessoas conhecidas dela para o queimar em pó. Ao que uma mãe podia chegar!
Dos três filhos, a sua descendência estava reduzida ao Rui que, ainda por cima, era diferente. Mas ele acompanhou-a sempre pelas feiras, mesmo quando já trabalhava no mesmo local do João, em que ganhando pouco a ajudou com parte do dinheiro que recebia mensalmente.
Uma das dificuldades cognitivas do filho era saber onde estava a cada momento e a mãe numa fase de demência a que chegou, deixou-o numa aldeia numa zona recôndita e partiu sem o levar. Era mais um filho que “queria” esquecer.
E assim Rui, que já estava só, ficou ainda mais perdido no mundo. Quando reencontrou o local onde trabalhava disse a todos que a mãe tinha morrido e só conseguia ter uma conversa normal com o João, que o continuava a aceitar como ele era.
 
 
 
Vidas Cruzadas 4
 
 
Mariana foi a primeira companheira na vida de João.
Nasceu numa família em que era a mais nova de quatro irmãos. De pai militar de carreira e mãe assistente social, desde muito nova, e ainda de fraldas, acompanhou os pais nas suas actividades de militantes políticos, antes da liberdade pós 25 de Abril.
O pai tinha sido expulso do exército quando certo dia 1 de Janeiro, numa revolta militar combinada entre vários colegas de armas em várias cidades, só ele honrou o combinado clandestinamente e levou para a frente o compromisso de tomarem os quartéis de assalto, para tentar mudar os destinos do país. Acabou por ficar preso vários anos, tendo conhecido, por acaso, no cárcere o avô materno de João.
A mãe, devido à sua profissão, em que tinha de contactar pessoas muito carenciadas e de ter conhecido famílias disfuncionais, começou a participar activamente em reuniões políticas. Abraçou esse caminho, principalmente após as cheias como consequência de três dias de chuva que destruíram, por completo, uma aldeia inteira na margem de um rio, submergindo-a com lama e que deixaram a descoberto a pobreza que existia fora das cidades.
Os irmãos de Mariana, todos rapazes, eram um arqueólogo, um marinheiro e um electricista. Todos estavam bem na vida havendo alguns deles que já lhe tinham dado sobrinhos.
Mariana, desde criança, sempre foi muito independente, mesmo tendo a mãe super protectora, tipo mãe galinha como tinha. Apesar dos quatro irmãos já serem crescidos, a mãe, queria sempre ter as suas asas protectoras sobre eles. Era de algum modo um ambiente sufocante de que todos eles tentavam fugir.
Desde o liceu, frequentou ambientes de contestação estudantil, onde começou a fumar, seguindo o mau exemplo de casa onde se fumava, entre todos os membros da família, vários maços de cigarros por dia. Passeou-se por um curso universitário que nunca chegou a acabar por ter começado a trabalhar na mesma empresa que João.
Ao princípio, por ele ser alguns poucos anos mais velho, nunca lhe deu muita atenção, nem lhe deu muita importância, até porque trabalhavam em sectores distintos da empresa e não se contactavam e raramente se cruzavam. Mas um dia, houve uma reestruturação na empresa e passaram a trabalhar em equipa sendo ela superior hierárquica dele. Tal alteração foi uma experiência muito boa para ambos porque se completavam em capacidade de trabalho e de organização. Ela mais emotiva e nervosa, e ele mais calmo e fleumático, faziam a equipa equilibrada e perfeita.
Até que um dia numa viagem que fizeram de trabalho sem nenhum deles estar à espera e para grande surpresa dos colegas, começaram a namorar. Passado pouco tempo, foram viver para casa dos pais que estavam no estrangeiro e só temporariamente também tinham a companhia do irmão marinheiro, quando estava em terra, por morar na mesma casa.
Viverem na casa dos pais dela, veio a revelar-se mais tarde uma má opção, mas foi a hipótese possível tendo em conta as dificuldades de ambos por neste emprego não usufruírem grandes salários, mas terem um prazer de estarem a contribuir para a divulgação da leitura, num país saído de muitos anos de iliteracia.
Foi um período muito intenso de militância em causas, de paixões e ódios, mas também um período de paixões amorosas fortes e inesquecíveis. Foi um período em que o dinheiro de Mariana e João só dava para comer iscas ao jantar num dia e o empadão dos restos destas no dia seguinte. Só se usavam os transportes públicos e não havia idas ao estrangeiro e o mais longe que se ia era rumo ao sul para a casa da família.
Passaram por uma fase de relacionamento difícil quando Mariana inesperadamente engravidou e nem deu oportunidade a João de dizer que gostava de ter o filho de ambos. A relação a partir daí não correu tão bem como antes.
Foram anos únicos para ambos que viriam a acabar com a chegada dos pais, quando eles decidiram regressar. A relação não durou muito mais tempo, porque o espírito super protector da mãe veio deteriorar o ambiente entre ambos. Acabaram por se separar mantendo-se sempre amigos, mesmo só se vendo de muitos em muitos anos.
Após esta separação, Mariana teve vários namorados, com os quais nunca chegou a ser completamente feliz, porque a relação com João tinha deixado marcas difíceis de apagar.
Certo dia conheceu um músico, quando desafiada pelo irmão mais novo, foi ver um espectáculo. Foi amor à primeira vista. Logo ela que não acreditava nisso. Ficou apaixonada pela expressão corporal, ritmo, empenho e força que ele colocava ao tocar o saxofone ou a flauta. Era como se ele e o seu instrumento fossem um só e ambos dançassem, ao ritmo da música. Como o irmão conhecia o grupo musical, pediu-lhe que a levasse junto dele. Teve uma sensação como nunca tinha tido quando conheceu o músico com uns caracóis lindos que a recebeu com um sorriso meigo de orelha a orelha.
Como ele andava pelo país a tocar, Mariana sempre que os espectáculos coincidiam com o fim-de-semana, e não estava a trabalhar, ia ter com ele. Não sabiam se era por ele também ter ficado apaixonado, mas cada vez tocava melhor, fazendo por vezes solos que lhe dedicava, meneando a cabeça na sua direcção na assistência.
No final da tournée de um verão, decidiram ir viver juntos para a terra dele, no sul do país. Era uma aldeia de pescadores, tal como o pai dele. A mãe trabalhava na indústria conserveira, sendo ambos pessoas muito simples.
Do amor entre ambos nasceram três meninas chamadas Sol, Mi (caela) e Fá (tima), todas com os caracóis do pai e a fisionomia da cara e os olhos da mãe. Desde pequenas habituaram-se a ajudar a avó na horta e a ir à pesca na ria com o avô. Foram criadas por eles e pela mãe pois o pai andava sempre por fora a tocar onde calhava. Ora tocava sozinho em festas de casamentos e baptizados, o que ele detestava, ora acompanhava músicos de nomeada no país e no estrangeiro. Era um tipo de trabalho muito precário, que obrigava a agarrar todas as oportunidades que apareciam.
Mas sempre que estava em casa era uma festa pegada e não se percebia quem era mais criança, se o pai, se as filhas. Brincava com elas de igual para igual e compensava o facto de ter sido filho único e sempre ter desejado ter uma irmã mais nova.
Tinha composto uma música dedicada e para cada uma delas, no dia em que elas tinham nascido, todas no mês de Abril, separadas por cerca de dez dias. Era músicas doces, de embalar a fazer lembrar as ladainhas dos tempos dos avós.
Era um músico que se dava bem com todos os colegas, de quem por vezes os outros se aproveitavam e o engavam pelo facto de no fundo ser um pouco ingénuo e achar que todos são boas pessoas. Aprendeu na pele, com o passar dos tempos, que a inveja e a concorrência dos falsos amigos são muito pior que a dos inimigos. Mantinha sempre Mariana fora do conhecimento dos percalços que lhe iam acontecendo, mas quando se falavam ao telefone, era impossível escondê-lo da mulher. Ela conhecia-o bem demais para ele lhe conseguir ocultar o que se passava.
Passado uns anos, quando Mariana já tinha duas das três filhas, foi organizado um encontro entre os ex-colegas da empresa onde ela e o seu companheiro João tinham trabalhado no que foi o primeiro emprego de cada um. Deslocou-se, de propósito do sul à capital onde reencontrou uma série de pessoas que gostou de rever, de saber que caminhos tinham seguido, onde viviam, que novas famílias tinham, quantos filhos tinham.
Principalmente gostou de estar com o João e recordar as famílias de cada um. Saber como estavam os pais e irmãos de cada um. Que é cada um tinha feito naqueles anos todos que tinham passado.
Mariana contou que estava muito bem com o músico dos seus encantos, mostrando as fotografias das suas filhas.
João retribuiu dizendo que também ele tinha encontrado o amor da sua vida. Não tinha filhos mas a mulher tinha dois filhos de um anterior casamento com quem tinha uma óptima relação.
Os pais de ambos estavam bastantes velhotes mas mantinham-se activos e actuantes em movimentos cívicos e políticos, cada um dentro das suas limitações físicas.
Mariana quando voltou a casa contou às jovens filhas como tinha sido o reencontro dos ex-colegas e de alguns amigos, relatando que não tinha reconhecido alguns por entretanto terem engordado bastante, mas que tinha gostado de rever o João, seu primeiro companheiro, de quem já lhes tinha falado anteriormente.
Pôs-se a pensar com poderia ter sido, quando vivia com João, se os pais não tivessem voltado para a casa que era sua.
Teria sido muito diferente, pois o João era uma pessoa muito calma, fria e reservada mas o equilíbrio que procurava só o encontrou com o pai das suas filhas, que era um expansivo, expressivo e apaixonado por tudo e por todos.
 
 
 
Vidas Cruzadas 5
 
 
João estudou num Liceu masculino, pois naquele tempo, nos anos sessenta, rapazes e raparigas andavam em escolas separadas… não fosse o diabo tecê-las. Para encontrar e estar com o sexo oposto era necessário ir às saídas das escolas femininas, à saída da missa, aos bailes nas garagens e mesmo assim ainda havia muita timidez de parte a parte, provocado pela falta de hábito de convívio.
Isto só foi colmatado, da parte de  João com a chegada à Universidade, no início dos anos setenta. Mas por ser um curso técnico elas eram uma raridade e quase todas deixavam muito a desejar em relação à beleza. Mas no seu curso havia uma jovem pequenina, de olhos claros por quem se encantou. Devido à sua timidez nunca passou de amor platónico. Além disso ela tinha um namorado, chamado António que se tornaria seu marido e mais tarde passou a ser o melhor amigo do João.
Com o aprofundamento da amizade por António, João transformou o encantamento pela sua colega numa relação de companheirismo e de partilha de interesses.
Dado os dois amigos terem interrompido os seus estudos, cada um pelas suas razões, João por se ter desiludido com o curso e António pelo período intenso da actividade política na época. Ambos acabaram por se encontrarem a trabalhar no mesmo local de Mariana, primeira companheira de João e Rui que viria a ser sem-abrigo.
Numa fase posterior, João sentiu que estava a estagnar e começou a procurar outro emprego que lhe permitisse evoluir pessoal e profissionalmente. Dado o bichinho que já tinha dos livros e que não o largava, passou a trabalhar na indústria gráfica, numa multinacional.
Foi uma óptima experiência pois deu para avaliar as diferenças de trabalhar numa jovem pequena empresa portuguesa, criada recentemente e uma empresa de um grande grupo com uma administração estrangeira que mal falava português em que tudo é programado e previsto, e com dificuldade em assimilar o espírito “desenrasca” e o voluntarismo dos portugueses.
Mas deu para ver o aproveitamento de criação e de desenvolvimento de competências dos seus colaboradores para a evolução do bem comum, bem como a diferença de produtividade em relação às empresas nacionais.
António continuou a trabalhar no mesmo sítio, de onde João tinha saído, e acabou por ficar desempregado quando a empresa fechou em consequência da falta de dinamismo, capacidade de gestão e de acompanhar a evolução do mercado perdendo completamente a razão de existência.
A esse período sem trabalho juntou-se mais tarde a separação da antiga colega estudo de João. Este acumular de situações provocou um profundo desgosto em António de que nunca recuperou na totalidade.
Certo ano, os dois amigos foram passar férias juntos por também ter coincidido com o fim da relação de João com a sua primeira companheira. Estavam os dois solteiros novamente. Divertiram-se nas férias como poderam tentando esquecer as relações de onde tinham saído. Até frequentaram bares, em todas as noites passadas nas praias do sul, convivendo com estrangeiros de todas as origens e a falarem as mais diferentes línguas ou mesmo com os sotaques mais díspares.
Numa noite, após a tarde toda em que as televisões nos bares tinham transmitido o casamento real de uma princesa com um príncipe mal-encarado e carrancudo, todos os cidadãos britânicos bebiam em excesso, não se percebendo se para comemorar se para esquecer ao que tinham assistido.
No final dessa noite, a polícia decidiu fazer uma rusga a todos os bares de quarteirão, levando todos, portugueses e estrangeiros, em carrinhas, para a esquadra que só estava a cerca de 100 metros da zona dos bares. Queriam identificar, um a um, as cerca de 450 pessoas que se amontoavam por toda a esquadra, incluindo pátio, jardim e escadas.
Começaram pelos nacionais em que perguntavam o número do bilhete de identidade e o nome do pai ou da mãe. Com essa informação, confirmavam pelo telefone, para a cidade mais perto, se coincidiam com os dados no computador. Em caso afirmativo, e caso não houvesse nenhum cadastro registado, o interrogado era de imediato posto em liberdade.
Com os estrangeiros surgiram situações caricatas com os polícias em frente de máquinas de escrever, autênticas peças de museu, a questionarem em português turistas que não compreendiam uma palavra do que lhe perguntavam.
A acção policial prolongou-se de tal maneira que a meio da manhã seguinte, quando João e António iam para a praia, ainda alguns ensonados turistas saiam da esquadra.
O que a polícia tinha pretendido era descobrir vendedores de droga que estavam entre os entrepelados. Bastava perguntar a qualquer pessoa, que frequentasse os bares que facilmente os identificava, não sendo necessário a polícia passar pela situação ridícula que tinha criado.
No período posterior à separação de António criou-se um pequeno grupo de cerca de dez amigos que o quis ajudar a sair do buraco, esquecendo a relação já não existente, mas tal nunca foi conseguido.
Uns anos mais tarde foi detectada em António uma doença mortal que o levou rapidamente. No seu funeral foi combinado entre os amigos, à semelhança do filme “Os Amigos de Alex” que se passariam a juntar regularmente, como forma de o recordarem.
Apesar de todos terem seguido vidas profissionais e caminhos de vida diferentes continuam a encontrarem-se, uma a duas vezes por ano.
Este grupo de amigos é tão heterogéneo que na sua composição estão psicólogos, antropóloga, médicos, engenheiros, especialista dos meios de comunicação, técnico editorial, escritora, uma professora universitária e até uma de yoga.
Conheceram-se todos nas cantinas das faculdades, local de muitos encontros, trocas de experiência e debates de todos os temas.
Hoje, além de recordarem a memória do amigo desaparecido, continuam a encontrarem-se para reviver o passado e ao mesmo tempo saborear os petiscos que cada um leva.
Recordam histórias e aventuras que protagonizaram, como daquela vez que acamparam numa praia e os homens foram buscar água e ao passaram numa horta, um deles, que tinha vivido no campo, disse para os outros todos citadinos, já viram estas bonitas curgetes. Quando reparou que todos eles olhavam para o cimo duma árvore, com ar de espanto e incrédulo disse: no chão seus estúpidos vê-se mesmo que são meninos da cidade.
Neste grupo formaram-se e desfizeram-se casais, mas continuaram todos a manter o contacto.
Um deles passou a ter uma namorada finlandesa, que mais tarde passou a ser a segunda mulher. Num dos encontros já foi sugerido se não seria virtual, pois mais ninguém a conhece, senão ele. Passou a tocar bateria num grupo de jazz e a ser vegetariano, o que o limita a usufruir dos bons petiscos nos encontros. Leva sempre um bolo de chocolate que sempre se desconfiou que fosse a mãezinha que o faz pois não se lhe conhecem dotes culinários.
Outro sempre foi conhecido, desde os tempos de estudante, por dizer que tem muito trabalho e estar sempre cansado e com sono. Mas felizmente é um verdadeiro cozinheiro e segundo todos falhou a opção profissional. Profissionalmente estuda o comportamento das pessoas relativamente á reacção perante os produtos à venda que enchem as lojas.
O mais novo é jornalista free-lancer, já correu todo o mundo e de vez em quando apanha falta às reuniões por estar em países diferentes dos destinos mais habituais e menos turísticos, durante longos períodos. Aproveitou para voltar a estudar virando-se para uma área completamente diferente da sua formação original.
Outra é antropóloga. Após a faculdade viveu num continente, numa época em que um vulcão adormecido acordou e devastou uma cidade inteira. Trouxe as cores berrantes na maneira de vestir a sua casa e a si própria. Está sempre com o astral em cima e vive o seu trabalho junto das etnias não integradas com um espírito de missão.
A professora universitária depois de várias experiências profissionais de outras áreas em que até foi desenhadora gráfica com sucesso, virou-se após a frequência de um novo curso, para o ensino universitário numa área também diferente da sua formação, dedicando-se à investigação dentro da sua especialidade.
Os médicos, que vivem numa cidade pequena do interior, rodeada de aldeias campestres, contam sempre histórias dos seus doentes que ficam bons e que depois lhes levam o carneiro, a galinha, os ovos, as couves, cenouras e batatas como agradecimento pelo bem que lhe fizeram. Trazem sempre para o encontro as prendas que os laboratórios lhes oferecem e de que algumas não se percebem bem para que servem. Mas estas ofertas provocam sempre momentos hilariantes. Fazem-se mesmos trocas entre alguns dos contemplados, por se coadunarem mais com os interesses de cada um.
O especialista nos meios de comunicação viveu num país estrangeiro anglo-saxónico onde se formou como jornalista. Tem uma cultura muito acima da média e um conhecimento sobre muitas matérias que normalmente o comum dos mortais não tem. É um bom conversador e com ele as noites prolongam-se sem se dar por ela. Junta a isto tudo o facto de ser um bom garfo. Se alguém quer saber de algum prato típico de algum restaurante ou de um vinho inigualável de qualquer parte do país é só perguntar-lhe.
A professora de yoga foi namorada de João, quando ambos eram crianças, ainda na experiência africana, em que este a esperava à janela, pela sua chegada à escola que ambos frequentavam. Chegou a casar com um músico de sucesso, pai dos seus quatro filhos. Foi viver para um país europeu onde está a metade do tempo que não está no seu país. Dá e recebe cursos de yoga e relaxamento e tem uma mente aberta e sempre disponível para se dedicar aos seus amigos.
A escritora, mulher de João, é uma jovem de espírito, que espanta todos com a sua abertura a coisas novas. Mãe de dois filhos brinca com os seus netos de igual para igual, organizando espectáculos quando estão todos juntos. É a compradora preferida das roupas deles sabendo escolher exactamente a peça de roupa que eles gostam de vestir.
Finalmente neste grupo, para o completar, falta falar do João.
Desde o 1º emprego que trabalha em livros. Já fez praticamente tudo que se pode fazer naquela actividade. Desde trabalhar numa gráfica a ter uma livraria, passando por trabalhar em várias editoras de diferentes tipos.
De tudo já fez. Só lhe falta escrever um livro. A sua companheira de vida sempre o incentivou a tal. E apesar do olhar para uma folha branca, escrever e ser exposto perante os outros os sentimentos mais pessoais e escondidos não ser um dos sonhos do João, talvez o grupo de amigos esteja qualquer dia perante uma nova realidade e uma surpresa inesperada. É o tímido do grupo, sendo muito observador, não lhe escapando nada. Só fala mais, quando está perfeitamente integrado, o que acontece nestes reencontros regulares. Quando estão juntos, o humor fino que pratica, delicia todo o grupo de amigos.
 
 
 
Vidas Cruzadas 6



 




Margarida é mãe de dois filhos e avó de cinco netos. É casada pela segunda vez, com João, casamento do qual não têm filhos apesar da insistência do actual marido. Separou-se muito cedo do primeiro casamento e mudou de cidade à procura de uma nova vida, diferente e melhor. Dessa primeira relação, além dos filhos comuns, ficou um respeito mútuo pelas vidas que cada um seguiu, quer pessoal quer profissionalmente.
Teve sempre, desde jovem, uma actividade que gostava de ter desenvolvido, mas a vida profissional e as dificuldades na criação sozinha de dois filhos desde pequenos, não o permitiram. Era escrever. Escrever textos muito pessoais, textos sobre arte, escritos sobre o que via à sua volta, o que a deslumbrava, mas também o que a perturbava e inquietava. Agora, que vive só com o seu marido, por os filhos já serem adultos com filhos, passa horas a escrever, esquecendo-se de comer e de dormir. Ela que sempre foi uma mulher diurna passou a estar horas seguidas, noite dentro, embalada a escrever. A escrever só para si própria, tendo sempre o marido por perto a querer ler os seus textos e a dizer-lhe que mostre a alguém com mais experiência que a ajudasse. Inicialmente frequentou alguns cursos de escrita criativa que permitiram arrumar algumas ideias espalhadas e não estruturadas. Posteriormente achou que tinha que começar a escrever sem medo, para ver o que resultava. Hoje já publicou alguns livros. A sua escrita é sobre coisas comuns da vida, mas em que os leitores reconhecem alguém ou alguma vivência idêntica pela qual já passaram.
Um dos temas sobre que escreveu, sem os identificar nunca, como seus, foram os netos. Todos os anos no final do período escolar, enquanto ainda eram pré-adolescentes, começava a imaginar e a preparar antecipadamente o período em que viveriam os cinco, com os avós, todos juntos na casa da praia.
São três raparigas, todas irmãs, e dois rapazes também irmãos, todos intercalados um ano entre si, em escadinha. São todos tão diferentes de maneira de ser, de feitio, de afectos, mas ficam todos entusiasmados com o período que passam com os avós. Todos se dão bem, tendo lamentando que, excluindo aquele período na praia, mais tarde na quinta no norte ou nos aniversários de cada um, raramente se encontrarem durante o resto do ano. As vidas ocupadas e agendas desfasadas dos pais não permitem esse convívio mais assíduo e constante.
Chegam a casa dos avós, com as suas malas, tipo tróleis, cheios de coisas e de ideias para encher os dias. Vão tão carregados, com roupa, livros, jogos e tudo o que se possa imaginar, que parecem que irão lá ficar a viver para sempre.
Organizam-se sozinhos em que cama cada um dorme na primeira noite e naturalmente há uma separação de sexos, que se acentuou conforme foram crescendo. No dia seguinte trocam todos de cama.
Combinam a organização de quem põe a mesa e a levanta, havendo por vezes negociações de trocas de calendário. Descobrem e comentam as ementas que a avó escreveu numa lista que está no frigorífico, afixada com ímanes, achando que há sempre muito peixe e pouca carne.
Descobrem o dia em que vai haver o piquenique na relva a três metros da casa onde levam a comida dentro de cestos, estendem as toalhas e deliciam-se com os petiscos da avó. Chamam-lhe o “jantar de domingo”, independentemente do dia da semana a que calhar.
Os pais telefonam-lhes regularmente durante a manhã ou ao final do dia. São despachados ao telefone porque as actividades em que estão ocupados e a excitação da liberdade vivida, dá-lhes a sensação de não terem muito tempo disponível.
Dos cinco a mais velha é a mais magra e escanzelada, apesar das grandes pratadas de comida que come todas as refeições. É muito atenta e perspicaz propondo sempre ocupações que fujam do futebol e de estarem especados, passivamente à frente da televisão. Aliás quase que não a vêm durante o dia, só lhe dedicando algum tempo antes de se deitarem. É uma ginasta exímia e tenta que a mana do meio e os primos façam alguns exercícios na relva que ela já faz com grande facilidade, por treinar na escola todas as semanas pelo menos duas vezes. Por ser a mais velha, e rapariga, tem um espírito protector, talvez até um pouco maternal, em relação a todos os outros.
O primo mais velho está na idade em que já não quer ser criança, mas também ainda não é adolescente e muito menos adulto. Também é magricelas e todas as actividades físicas que faz, fá-las bem. A preferida é a natação que também pratica regularmente. Tem uma capacidade intelectual grande. Quase não estuda e tem sempre muito boas notas. Basta-lhe estar com atenção nas aulas. Por vezes é repreendido porque como tem uma capacidade de apreensão mais rápida que os colegas os distrair e perturbar as aulas. Gosta de fazer truques de ilusionismo, de jogar às cartas e de jogos de memória e de inteligência.
A neta do meio é a gorducha, apesar de ser a mais alta. Não gosta de nenhum exercício físico por causa das suas limitações. Tenta participar nas actividades colectivas, mas muitas vezes exclui-se por se achar incapaz, o que não é verdade. É muito insegura, tentando-se sempre proteger junto da irmã mais velha. Nunca a marginalizando, esta tenta puxar por ela, mas normalmente sem sucesso. É a mais afectiva e carinhosa tentando talvez assim colmatar as suas diferenças e desvantagens para o resto do grupo.
O rapaz mais novo gosta sempre de estar com os mais velhos. Fá-lo crescer, fá-lo sentir maior e mais importante. É o mais cerebral de todos. Ainda não andava na escola, mas por ter um irmão mais velho, já sabia ler, escrever e fazer contas enormes. Parece estar sempre na lua, mas isso tem a quem sair. A avó materna e o avô paterno também são uns sonhadores que de vez em quando põem os pés na terra. Perde tudo. Chapéus-de-chuva e de sol, mochilas, camisola e tudo o mais que é possível deixar em qualquer lado. Às vezes até não sabe onde pôs os óculos que tem na cara. Não gosta de ir à praia por ter medo do mar, porque quando era muito pequeno apanhou um susto na água.
O benjamim é a menina querida de todos. É superprotegida e acarinhada, tratada como se fosse uma boneca. As manas dedicam-lhe muito tempo e estão sempre a ver se está tudo bem com ela. Nem é necessário os pais darem-lhe essa tarefa porque elas o fazem naturalmente. Está sempre pronta para alinhar nas brincadeiras com os mais velhos mesmo tendo dificuldade em acompanhá-los nas correrias à volta da casa devido às suas pernas pequeninas e ainda inseguras. Todos a corrigem nas palavras que ainda pronuncia mal e com vogais trocadas, havendo sempre voluntários quando é necessário mudar a fralda molhada ou suja ou dar-lhe a comida na boca.
Margarida e o marido rejuvenescem quando têm os cinco netos juntos consigo. Apesar de o cansaço que este convívio anual lhes deixa no corpo, sabe-lhes bem e vêem todos os anos como os netos vão crescendo, vão evoluindo como pessoas, na personalidade e como os gostos e os interesses vão mudando com a mudança de idade. É visível como eles com o passar dos anos, cada vez se entretêm mais facilmente sozinhos, não sendo necessário estar tão vigilantes em relação ao seu comportamento.
Geralmente o marido já está a trabalhar naquele período do ano e Margarida consegue gerir durante o dia todas as actividades lúdicas, gastronómicas e a preparação de um espectáculo que apresentarão mais tarde a toda a família. Os cinco jovens que ficam na casa da praia durante o dia, e que não vão para a praia com a avó, ocupam o seu dia nunca sentindo o desejo nem necessidade de sair da casa e do jardim, só saindo à noite dessa área a que estão limitados durante o dia, para um passeio a pé pela zona, agora já na companhia do avô.
Por viveram em edifícios altos e com muita gente, os mais novos perguntam porque é que ali as casas são todas pequenas e só há uma família por cada casa e não aqueles amontoados de pessoas como no prédio onde vivem.
Á noite já deitados na cama, e antes de adormecerem, todos lêem os livros que trouxeram, e por vezes, já às escuras, conversam sobre o que fizeram durante o dia, o que poderão fazer no dia seguinte ou ainda ideias para o espectáculo que estão a preparar, muitas vezes acompanhadas de guerras de almofadas.
Às vezes, os mais velhos fazem directas durante a noite, que tentam esconder dos avós, mas que na realidade estes conhecem e fingem não saber. Geralmente os avós deixam-nos fazer coisas que seriam impensáveis nas suas próprias casas.
O espectáculo que fazem no final da estadia em casa dos avós é cada ano subordinado a um tema sendo preparado com todo o preceito. Fazem um ensaio geral na véspera, para os acertos finais. Tem um cenário que construíram, guião combinado por todos, adereços, figurinos adaptados a cada intervenção que fazem e a apresentadora que é a avó vestida a rigor com vestido comprido.
Começa com música com as flautas que trazem, segue com canções e danças em moda naquele ano, recital de poesia, ginástica, adivinhas, anedotas, truques de ilusionismo, acabando com passagem de modelos pelos cinco netos.
Após o espectáculo há oferta de prendas, feitas por eles próprios, a toda a assistência composta por família, alguns amigos e um ou outro vizinho.
Depois daquele evento voltam para casa com pena de ter chegado ao fim um período diferente de tudo o que fazem no resto do ano. Nunca mais esquecerão aqueles verões passados em casa dos avós.
Estes, apesar do cansaço, ficam com uma sensação de vazio com a partida dos netos. Respiram de alívio pelo descanso que o corpo já lhes está a pedir e recordam algumas das situações tão ricas, apaixonantes e gratificantes que viveram nos momentos que só regressarão no próximo ano.
Com nostalgia recordam as fotografias das festas que colaram num painel à entrada da festa, onde se vêem os netos desdentados e ainda sem óculos. Como eles cresceram! Como são tão diferentes uns dos outros! Como se dão todos tão bem!
Fica sempre no ar a interrogação se no ano seguinte, os netos já mais crescidos, ainda quererão fazer o festival de verão, que já dura há alguns anos. Com o crescimento de todos os interesses vão-se alterando pelo que a dúvida é legítima.
 
 
 
 
Vidas Cruzadas 7
 
 
Ofélia era a criada, que em África trabalhava em casa dos pais de João. Dormia no quarto ao lado da cozinha que ficava perto da saída para as traseiras da casa onde estavam o jardim e a lavandaria.
Era originária de uma família transmontana, tal como o lado paterno dos avós de João.
Ofélia tinha doze irmãos. De uma família de agricultores, só viviam do que plantavam e semeavam, que vendiam semanalmente na cidade mais próxima a troco de pouco dinheiro.
Antes de ir para o ultramar, tinha rumado para a capital, para a casa dos pais de João, quando o seu único namorado, e vizinho de infância, lhe disse que ia emigrar dado não conseguir viver mais no país. Queria procurar uma vida melhor que nunca encontraria na sua terra.
O início do namoro de Ofélia foi numa data que nunca esqueceu, 4 de Setembro. Foi quando os dois se encontraram no carreiro que separava as suas quintas e pela primeira vez o rapaz loiro e de olhos verdes escuros, cor de azeitona, lhe fez uma tímida carícia, ao tentar compor-lhe o cabelo que lhe caía para a cara suada e queimada pelo sol do campo.
Como havia um certo afastamento e até inimizade entre as duas famílias, provocada pelas guerras constantes pela posse da água que partilhavam para regar os campos de milho e videiras, tiveram sempre um namoro escondido de ambas as famílias.
Tinham sempre uma certa dificuldade em encontrarem-se, para estarem alguns momentos juntos, mas acabaram por arranjar uma solução. Já depois de nas duas casas todos dormirem, saíam pé ante pé, e dirigiam-se para a eira, de um ou do outro, onde, no verão, deitados na laje escura, olhavam para o céu, faziam projectos e sonhavam. No inverno, aconchegavam-se nos fardos de palha que estavam amontoados, num canto do estábulo.
Mas tudo se começou a esfumar no dia em que o namorado de Ofélia percebeu que não era futuro continuar a viver do campo que cada vez menos frutos davam. Decidiu que queria sair do marasmo do país que não lhe daria nenhum futuro. Queria ter uma profissão e achava que poderia ser um bom carpinteiro, dado o jeito e perfeição que tinha em todos os trabalhos que fazia com as mãos calejadas.
A ida para a tropa obrigou-o partir para uma cidade no sul, onde encontrou jovens da mesma idade, também todos eles vindos do campo e que já tinham alguém da família, emigrada. Esta era a única hipótese de decisão, que permitiria juntar algum dinheiro, para enviar para os pais e ajudar toda a família.
Um dia, num dos raros fins-de-semana que pôde sair do quartel e ter dinheiro para ir à terra, disse a Ofélia a decisão que tinha tomado de assim que regressasse da tropa, dentro de dias, partir, indo a salto para França. Nesse momento ela percebeu que, provavelmente tinha acabado de perder um amor, até aí, o único da sua vida.
Quase todos os irmãos de Ofélia, já tinham seguido o mesmo caminho do ex-namorado, partindo para o estrangeiro, assim que acabavam o serviço militar.
As irmãs, também abandonavam o trabalho no campo e espalharam-se por várias cidades. Como algumas, como Ofélia, só tinham a escolaridade mínima, e outras eram analfabetas, acabavam por fazer trabalhos domésticos em casas com posses para suportar os custos de ter quem lhes fizesse as lides da casa, a troco de pouco mais do que comida, dormida e a folga ao domingo.
Com o fim abrupto do namoro, Ofélia decidiu também seguir o caminho das irmãs mais velhas e ir para a capital onde já tinha uma das irmãs a trabalhar em casa de uma família das mesmas origens transmontanas.
Foi aí que conheceu Ricardo, que mais tarde seria pai de Luisa e João.
Após alguns meses na capital, Ricardo desafiou-a a acompanha-lo a ele e à sua recente e jovem esposa Rosa, a partir para África continuando a trabalhar para eles em sua casa. Ofélia nem pensou duas vezes e pela primeira e única vez na vida viajou de avião com a família que a contratara.
A experiência africana, em que fez parte integrante da família, durou quinze anos. Viu nascer e crescer Luísa e João. Prolongou-se, até todos regressarem inesperadamente de volta depois do início da guerra nos anos sessenta.
Quando voltou de barco ao cais da capital sentiu-se muito desambientada na cidade onde tinha trabalhado em casa dos pais de Ricardo, durante um curto período.
Passado um ano decidiu regressar à sua terra, onde alguns dos irmãos também já estavam depois de voltarem, algo desiludidos, dos destinos para onde tinham emigrado.
No primeiro domingo que foi à missa reencontrou o homem que tinha sido namorado, quase vinte anos antes. Cada um contou as suas aventuras e percalços que tinham tido nas vidas que tinham levado longe da sua terra natal.
Mas fugiam de perguntar um ao outro qual a situação pessoal actual de cada um. Só falavam do passado. Tinham receio que o presente os afastasse de novo. Não sabiam se eram casados, se tinham filhos. Eram assuntos tabus, ou simplesmente preferiam não saber e continuarem com as dúvidas que tinham sobre esses assuntos. Não queriam reviver o sofrimento que cada um tinha tido quando se tinham afastado/separado anteriormente. Resistiram a partilhar o que de mais íntimo lhes ia na alma. Limitaram-se a falar de tudo o que os rodeava, casa, irmãos, amigos comuns e pouco mais que algumas trivialidades.
Os anos passados tinham apagado o afastamento entre as duas famílias vizinhas. Os pais de ambos já haviam morrido. Ambos os lados tinham perdido irmãos no início da guerra em África. Parte de cada família continuava emigrada e à espera de melhores dias para regressar. As duas famílias eram agora vizinhas sem nenhum tipo de problema. A entreajuda tinha substituído o anterior distanciamento.
Ofélia e o ex-namorado, só se voltaram a encontrar passados uns meses, no casamento de um outro vizinho e amigo comum.
Quando o viu ao longe, Ofélia aproximou-se e não mais o perdeu de vista. Apercebeu-se que ambos tinham ido sós ao casamento, sem nenhuma companhia.
Sentaram-se os dois, ligeiramente afastados no sítio mais distante do altar, na última fila dos bancos corridos da igreja. Foi como se quisessem estar o mais perto possível da porta de saída, não se fosse dar o caso de quererem fugir um do outro.
Mas não foi isso que aconteceu. Quando o padre estava a perguntar aos noivos: “Aceita… para sua mulher…”, Ofélia, aproximou-se dele, agarrou-lhe na mão e muito corada e cheia de coragem perguntou muito depressa: “Queres casar comigo?”. Felizmente estavam os dois sentados, senão tinha-se ouvido vindo do fundo da igreja o estrondo de alguém a cair no chão com o espanto de uma pergunta tão inesperada. A aceitação foi imediata. Tinham de recuperar todos os anos que tinham estado separados após o namoro interrompido abruptamente.
Quando a igreja se esvaziou e o pároco regressava do cimo das escadas da fotografia da praxe com os noivos, Ofélia e o recém/antigo namorado chamaram-no à parte. Tentaram acertar a data do casamento e além de receberem em troca os parabéns do padre este diz-lhes: “Meus filhos. Eu sabia o que cada um de vós me dizia no confessionário. Fico muito feliz pela vossa decisão. Acho que a merecem. Mais uma vez parabéns!”
Após o casamento, decidiram ir viver para uma outra localidade. Queriam abrir uma loja de móveis. Tinha-se concretizado o sonho de carpinteiro do marido e achavam que o casal tinha capacidade e engenho para viverem do que ele construía para vender e do que ela cultivava no terreno anexo à casa. Foi o que aconteceu durante largos anos.
Tinha sido com muita pena que Ofélia perdera o rasto da família com quem vivera em África. Ainda tinha feito várias tentativas para os reencontrar, mas foram sempre sem sucesso. Gostava de saber como estariam Luísa e João que tinha criado como se fossem seus filhos, até terem regressado à metrópole todos de barco. Queria saber como seguia a vida de cada um.
Passados muitos anos, numa ida casual à praia nos arredores da capital, o que já não fazia desde quando tinha regressado de África, reencontrou João.
Como foi bom rever o seu menino, mais gordinho e já com cabelos grisalhos. Só se recordava de ter tido tanta alegria no dia em que se tinha casado com o namorado reencontrado, mas nunca esquecido.
 



Vidas Cruzadas 8






Ricardo é casado com Rosa e pai de João e de Luísa. Constituem a família Menino.
Foi o sétimo filho de um casamento em que dadas as dificuldades nos partos na época só sobreviveram ele e o irmão mais velho. Teve sempre um comportamento e relacionamento inconstante e difícil com os pais. Foi desde criança problemático de criar e de educar pois os pais tinham um visão excessivamente austera e uma noção antiquada, ultrapassada e rígida das relações familiares.
Ricardo sempre considerou que tinha sido um filho não desejado e, por essa razão, se sentiu marginalizado e menosprezado. Mesmo o relacionamento com o único irmão não era fácil, talvez motivado pela diferença de quinze anos de idade.
No seu percurso escolar, foi sempre um aluno indisciplinado, de tal modo que perante as constantes queixas na escola sobre o seu comportamento os pais o enviaram para um colégio interno o mais longe que podiam de casa, no extremo norte do país. Acabou por ir para um colégio católico o que o levou toda a vida, apesar de ter sido baptizado, a dizer-se ateu e a não aceitar que os seus filhos seguissem aquela religião. Talvez as suas convicções políticas também tivessem contribuído para isso.
Quando regressou do internato forçado e para contrariar os pais que queriam que seguisse o curso de advocacia, disse-lhes que queria ir para medicina.
Não chegou a finalizar o curso porque três situações que se conjugaram contribuíram para isso. A primeira foi o relacionamento com os pais que se degradou cada vez mais. Outra foi o facto de se ter envolvido em lutas políticas não toleradas pelo governo de então em que havia a grande possibilidade de vir a ser preso. Por último o querer afastar a sua futura mulher, Rosa, de uma paixão que tinha tido por um professor, fazendo-a esquecer.
A tudo isto juntou-se o facto de os pais apesar de viverem folgadamente, e poderem fazer tal, nunca terem contribuído financeiramente, ajudando no início de vida do casal.
Na mesma semana que casaram, Ricardo e Rosa partiram para África, onde iriam iniciar uma nova vida e tentar deixar para trás algumas dúvidas, não resolvidas, que nunca os iriam abandonar.
O curso incompleto de medicina não iria permitir que iniciasse uma profissão dentro da área da saúde e Ricardo tentou junto de alguns seus conhecidos, que também tinham ido para a mesma terra à procura de oportunidades, encontrar uma ocupação.
Mas como reflexo de um feitio de relacionamento conflituoso e difícil que sempre o tinha marcado, todas as portas se mantiveram fechadas, não surgindo nenhuma saída profissional.
Após Rosa ter aberto uma escola infantil onde ela ensinava e dirigia, Ricardo acabou por abrir uma escola primária que orientava. Não podia ensinar porque a sua formação não o permitia, mas coordenou com muito empenho e qualidade uma escola que ficou como referência.
Os pais dos alunos confiavam em pleno nas suas opiniões sobre a educação e formação dos seus filhos. Todos os dias recebia à porta cada aluno quando chegavam acompanhados por quem os levava. Por vezes dizia-lhes que a criança tinha de voltar para casa pois estava a ficar doente, com febre, com sarampo ou varicela, bastando-lhe olhar para os olhos. Os pais inicialmente reagiam mal a isto, mas passado um ou dois dias confirmavam-se as indicações que tinham recebido de Ricardo.
Também reconhecia facilmente quais dos miúdos que não iriam ser destros e recomendava aos pais para nunca contrariarem a tendência dos filhos, porque senão eles iriam ter comportamentos inesperados, como por exemplo, voltar a urinar de noite na cama, coisa que já tinham deixado de fazer até então.
Na vivência africana, talvez provocado pelo calor ou pelo ritmo de trabalho ser bastante mais calmo, o seu mau feitio e intolerância a certas situações esbateram-se ligeiramente.
Contudo a desconfiança em relação à paixão que o professor da mulher tinha tido por ela, e que ele sempre achou que tinha sido correspondida por Rosa, nunca deixou que o casamento fluísse num caminho de franqueza e de felicidade.
De tal modo não era saudável a relação do casal que também Ricardo nunca se apercebeu, até a mulher lhe contar a medo, receando a sua reacção violenta, o que tinha acontecido em casa entre um criado e a filha.
Logo com o empregado favorito, o Joaquim, que ouvia uma rádio clandestina que incentivava o desejo de emancipação e independência do seu povo. Logo com quem Ricardo tinha conversas e com quem descobrira algumas afinidades entre as suas ideias políticas e os anseios e os desejos do jovem, para o seu país. Logo aquele rapaz africano que lhe tinha dito que se houvesse alguma vez uma revolta, Ricardo podia estar descansado porque ele sabia como ele tratava com respeito os da sua raça.
Numa conversa com a mulher decidiu rapidamente, sem o apoio dela, enviar, ou melhor despachar a filha Luísa para casa dos avós paternos na metrópole. Foi uma maneira de deixar de ver a filha à frente, e tentar esquecer, que não a tinha protegido dum acto violento.
O ano incompleto em que a filha esteve ausente, e com quem o pai se recusava sempre a falar ao telefone, deixando essa tarefa à mãe, dedicou-se obcessivamente à escola, fugindo assim de estar em casa.
Além disso a sua sogra Inês, tinha chegado para apoiar a mulher na situação insuportável e difícil de estar afastada da filha, por decisão exclusiva do marido.
Com o regresso de Luísa a casa, mais cedo do que o esperado, Ricardo ouviu a insistência e desejo desta querer ter um irmão. Foi um dos poucos pontos em que esteve de acordo com a mulher nos últimos anos, e ficou combinado, que mesmo não tendo relações havia alguns anos, corresponderiam ao anseio tão insistentemente solicitado.
Passado cerca de um ano, nasceu o João que era tão parecido com a mãe Rosa e a avó Inês, que era um espanto para todos. Tinha o mesmo sorriso e as mesmas covinhas ao lado da boca. Durante um período inicial o pai ainda acompanhou o seu crescimento e evolução, mas mais tarde voltou ao comportamento anterior que já tinha acontecido com a filha e afastou-se do afecto que eles tanto ansiavam.
Este distanciamento levou a que ambos filhos, Luísa e João, se aproximassem cada vez mais da mãe, da avó Inês e da empregada Ofélia estreitando ainda mais as relações de afecto e cumplicidade. Isto provocou uma reacção ciumenta de Ricardo que se manteve o resto da vida.
Quando passado uns anos houve a revolta, com o objectivo da independência das populações autóctones, Ricardo viu aparecer em sua casa o antigo empregado Joaquim, que lamentou o que tinha feito à sua filha, porque aquela família sempre o tinha tratado tão bem não o merecendo. Mais uma vez relembrou a informação, que anteriormente já tinha transmitido de que podiam estar descansados, que pelo comportamento da família, tanto quanto fosse possível, não iriam sofrer retaliações praticadas por alguns excessos de vingança cega.
Assim foi. O que Ricardo e ninguém podiam prever foi o que aconteceu a seguir. Os colonos, os que tinham tido comportamentos racistas e discriminatórios perante os seus empregados/criados, assustados com as retaliações que lhes podiam acontecer às suas famílias, rapidamente enviaram as mulheres e os filhos para a metrópole, ficando eles a defender as suas terras, casas e outros pertences.
Este situação, que decorreu logo nos meses iniciais da revolta, provocou que em pouco tempo, as duas escolas da família Menino perderam cerca de 300 alunos de uma vez. Ficaram pouco mais de 30 crianças, cujos pais achavam que tudo se iria resolver rapidamente ou porque não tinham posses para reenviar as famílias de volta de onde tinham vindo, por terem chegado havia pouco tempo ao paraíso prometido.
Apesar de também não quererem partir, Ricardo e a família não tiveram alternativa a não o fazer. Partiram primeiro de barco os filhos Luísa e João e as mulheres da casa, Rosa, Inês e Ofélia. Ricardo ainda ficou, para partir dois meses mais tarde, após entregar a casa em que viviam e tentar vender as duas escolas, o que aconteceu como é comum nestas situações, a um preço irrisório a uns especuladores que enriquecem à custa das desgraças dos outros. Encaixotou alguns móveis, roupa, livros e partindo deixou para trás algumas memórias e recordações de vida.
O regresso, a casa dos pais, agora com mulher e dois filhos, foi humilhante para Ricardo. Havia todo um passado de mau relacionamento com os pais que não tinha sido apagado pelo afastamento a que tinham estado sujeitos. Continuaram a não ajudar financeiramente no recomeço de vida que tentavam ter. A agravar esta situação acrescia a dificuldade de Ricardo encontrar emprego que permitisse todos saírem da casa com decoração colonial fruto do pai ter sempre trabalhado como funcionário público nas diversas colónias portuguesas de Ásia e África.
Quando se empregou, numa actividade que fugia completamente à sua formação e da sua experiência profissional africana, poderam rapidamente sair dali e disfrutar de uma pequena casa junto à praia. Foi um novo período em que voltou alguma felicidade à família. Ricardo acabou por singrar na empresa que tinha acabado de ser criada e cresceu profissionalmente com o crescimento dela.
O facto de a sua mulher ter desejado continuar a trabalhar com crianças e ter conseguido empregar-se primeiro que ele, criou-lhe sempre problemas de consciência, por achar, como machista que era, que o homem é para trabalhar e sustentar a família e a mulher era para estar em casa a tomar conta dos filhos. Sentia-se inferiorizado em relação à mulher, apesar dela nunca para tal ter contribuído com o seu comportamento.
Com o passar dos anos o seu feitio foi melhorando ligeiramente, mas mesmo assim como reflexo da educação que tinha recebido dos seus pais, nunca foi capaz de ajudar financeiramente os seus filhos, quando eles em alguma altura das suas vidas o necessitaram.
O seu relacionamento com a filha Luísa continuou sempre muito difícil pelas suas maneiras de serem muito semelhantes, apesar de as perspectivas de vidas serem opostas.
Com o filho João teve uma maior proximidade mas com o decorrer do tempo a relação foi-se degradando, apesar da dedicação e acompanhamento que aquele lhe dedicava.
 





Vidas Cruzadas 9




Inês é avó de Luísa e João e mãe de Rosa.
Nascida de famílias muito modestas, nunca teve possibilidade de estudar para além da quarta classe. Dado ter casado com um amigo da família, guarda-fiscal, viúvo e com dois filhos ainda crianças, nunca teve oportunidade de ter uma profissão. O seu único e importante trabalho foi ser mulher e mãe e criar quatro filhos, um dos quais Rosa.
Mudava regularmente de casa, em consequência da profissão, algo nómada, do marido. O seu dia-a-dia resumia-se a tratar dos filhos, cozinhar, cozer, bordar, limpar a casa e gerir um orçamento parco para poder alimentar seis pessoas. Nunca diferenciou no tratamento e dedicação entre os filhos e os enteados. Era o que se podia chamar uma mãe-coragem.
Como Rosa, irmã de Manuel, era a sua única filha, ela ajudava-a nas denominadas tarefas femininas. Inês e o marido conseguiram que os quatro filhos tivessem mais formação que eles tinham tido, fruto do modo como Inês conseguia esticar o dinheiro que chegava a casa todos os meses.
Para juntar mais uns tostões ainda arranjava tempo e paciência para bordar lençóis, toalhas e roupa para pessoas que ia conhecendo conforme mudavam de localidade. A qualidade dos trabalhos e a quantidade de encomendas que recebia era tal que por vezes nem as conseguia satisfazer na totalidade em tempo útil antes de mais uma mudança de casa.
O marido de Rosa, dadas as terras por onde ia passando juntamente com a família, permitiu-lhe conhecer realidades diferentes em várias zonas do país. Isso levou-o a começar a perceber que o que era defendido pelo governo repressivo de então era o oposto do que constatava com os próprios olhos. Só encontrava miséria e pobreza por todo o lado, fosse no norte ou no sul. Como consequência começou a pôr em causa e a contestar certas medidas, das quais ele era um dos executantes, como representante local no posto da guarda onde estava colocado.
Como resposta, a hierarquia militar, dado começar a considerá-lo um elemento estranho que era necessário isolar para não espalhar os seus pontos de vista, como uma erva daninha, encontrou como solução a mudança constante de posto e consequentemente de localidade. Ora ia para norte no inverno gélido ora era colocado no sul escaldante, tentando assim quebrá-lo na vontade de contestar.
Tal solução teve duas consequências.
Uma, a negativa- A família no mesmo ano tinha de mudar duas ou três vezes de zona e consequentemente os filhos mais novos de escola.
Outra, a positiva- Tinham conseguido o oposto do pretendido. Tinha-lhe possibilitado esclarecer cada vez mais militares da guarda-fiscal sobre o que estava mal no país.
Ao comando militar, só lhes restou uma alternativa. Pela primeira vez na história da corporação, expulsaram um elemento do corpo que era suposto ser impenetrável de elementos considerados nocivos à ideologia do estado vigente, com perda de vencimento e direitos sociais adquiridos.
Inês foi sempre a primeira a apoiar o marido na defesa de causas que, a nível pessoal, só tinha dificultado e trazido problemas à família. Como tal incentivou-o a continuar a defender as ideias que também passou a partilhar.
Apesar do ar frágil e doce de Inês, as ideias de liberdade, de direito a melhores condições de vida e bem-estar para todos, que preconizava como o marido, mostrou uma mulher de muita garra e fibra, até aí adormecida.
As dificuldades financeiras porque passaram, levou os filhos voluntariamente e sem nenhum apelo nesse sentido dos pais, a procurarem trabalho onde o encontrassem.
Os dois filhos do primeiro casamento, mais velhos, foram trabalhar, um para uma mercearia como marçano, o outro para o balcão de uma loja de tecidos. O terceiro rapaz, mais dado aos números, foi para um escritório onde começou por ajudar a fazer recados fora e rapidamente passou a ajudar nas contas e a fazer a escrita da pequena empresa.
Só Rosa, dado ser muito mais nova, e os pais não terem permitido o abandono dos estudos, continuou na escola que lhe daria formação para poder ser professora primária.
Rosa, naquele período difícil porque a família passou, não teve a possibilidade de contribuir monetariamente. Em alternativa, ajudava a mãe, em casa, tanto quanto podia ou sabia, como forma de minorar um estado de coisas que se arrastou até à morte do pai, passados três anos.
Por estarem muito tempo juntas, e serem as únicas mulheres da casa, Rosa e Inês ficaram muito ligadas afectivamente partilhando mutuamente angústias, anseios e sonhos.
Inês pressentiu desde o primeiro momento, a paixão impossível da filha Rosa pelo professor que tinha na escola de formação artística que frequentava. Quando viu a sua fotografia, espantou-se com as semelhanças físicas que tinha com o seu marido, já falecido. Alertou-a para o facto se não estaria a transferir para o professor o quanto gostava do pai quando ele era vivo. Apercebeu-se pelas longas conversas que tinham, quando conjuntamente bordavam roupa, para fora, que tal não era assim.
Inês foi também a primeira a saber que o rapaz chamado Ricardo que Rosa tinha conhecido, quando saía com os amigos dos irmãos, não se encaixava no feitio dela e tentou chamá-la à realidade. Mas provavelmente Ricardo era um escape à paixão pelo professor, tentando fazer esquecê-lo.
A partir do momento em que ela o aceitou como marido e ambos decidiram partir para África, Inês sempre a apoiou em tudo o que podia, dentro das suas limitações.
Tanto que assim que quando a filha lhe escreveu numa carta sobre a situação horrível que a neta Luísa tinha vivido, prontificou-se de imediato a partir, para tão longe, em seu apoio.
Ela e a fiel empregada Ofélia foram os únicos suportes de Rosa no período de cerca de dois anos que decorreram até ao nascimento de João.
Eram impressionantes as semelhanças físicas que o neto tinha com as duas mulheres da família, Inês e Rosa.
Inês foi ficando, ficando e acabou por estar em casa da família até ao João já ter seis anos e a irmã Luísa catorze, quando todos tiveram que partir inesperadamente de África.
No regresso à metrópole Inês, separou-se da família e foi viver para o sul, junto do filho mais velho. Os dois filhos do primeiro casamento do marido, já não eram vivos.
Foram uns anos em que teve muita dificuldade em reatar o convívio familiar que tinha com a filha Rosa e os dois netos. Ricardo, o genro, levantava todo o tipo de obstáculos a esses reencontros, arranjando as mais variadas desculpas, cada uma menos plausível que a outra. A relação, entre ambos, era tão pouco amigável que quando Ricardo recebeu o telefonema do cunhado a dizer que a sogra tinha morrido, só passado um dia do funeral realizado é que o disse à mulher alegando que não a queria fragilizar mais do que ela estava.
 



Vidas Cruzadas 10



 
A mãe de João e Luísa e mulher de Ricardo é Rosa.
Nasceu numa família sem grandes recursos, de pai guarda-fiscal e de mãe doméstica, como era tradição na época.

Devido à profissão do pai percorriam o país conforme ele era colocado em quartéis de fronteiras terrestre ou marítima, onde uma das principais tarefas era controlar o trânsito e o contrabando de mercadorias.
Como tal, Rosa apesar de ambas das famílias dos pais serem algarvias, tinha três irmãos mais velhos cada um deles nascido numa terra diferente, do norte.

Ela própria tinha nascido e sido criada até aos seis anos, num quartel-fortaleza numa bela vila piscatória, a sul de Lisboa. Depois foi mudando de casa/quartel vários anos, trocando ao mesmo tempo de escola. Regularmente tinha outros professores e criava novos amigos conforme mudava de zona.
Até que na adolescência, para se fixar numa escola, foi viver com o irmão mais velho, do qual tinha uma grande diferença de idades por ser o filho mais velho, do mesmo pai mas de outra mãe, e este ter começado a trabalhar no comércio e de precisar de uma residência fixa e não itinerante.

Era um irmão que se dedicava, como um pai, à menina de cabelos e olhos lindos e duas covinhas dos lados da boca que nunca deixou de ter, e que brilhava de orgulho na sua companhia quando estava com os seus amigos e amigas.
Levava-a ao teatro e ao cinema, ensinava-lhe as canções da moda, passeavam de barco no jardim, nos dias de canícula.
Partilhavam tudo, incluindo o parco salário que ele recebia. Tinham uma cumplicidade enorme. Aconselhavam-se um com o outro nas mais pequenas coisas, não se notando a diferença de idades que era de quase uma geração.

Rosa confidenciou ao irmão quando começou, pela primeira vez, a sentir um aperto no estômago além de uma ansiedade enorme quando esperava pelas aulas do professor de desenho. O irmão alertou-a para o facto de tal ser perigoso, por ela acalentar esperanças, numa paixão impossível, e poder sair magoada por desejar uma coisa improvável de se concretizar.
Mas Rosa tinha um deslumbramento pelo professor que lhe tinha despertado o adormecido sonho do desenho, juntando o facto de lhe ter aberto o coração para novas emoções. Tentou seguir o sábio conselho do irmão e aproveitou o facto de com a mudança de ano escolar e nova professora na disciplina, tentar esquecer um possível problema.

No último ano de estudo, conheceu Ricardo durante as férias. Era um amigo de um dos outros irmãos. Não lhe prestou muita atenção até porque lhe pareceu, pelo tipo de conversas que tinha, que teria namorada. Não era uma pessoa muito agradável ao primeiro contacto, parecendo ser uma pessoa amarga por estar sempre zangado com tudo o que rodeia.
Rosa não gostava muito de praia, e não sabia nadar, mas acompanhava o irmão e ia com ele para as praias da costa litoral.

Muitas vezes também aparecia Ricardo que começou a aproximar-se e a falar mais com ela. Tentava ganhar a sua amizade, apesar da grande resistência e afastamento de Rosa. Teve uma aproximação e um comportamento com se fosse uma aranha e teceu uma teia de sentimentos à volta dela. Quando ela deu por isso estava presa. Ricardo tinha-se aproveitado da fraqueza dela após a paixão pelo professor e soube explorar e tocar em pontos muito sensíveis do seu íntimo. Era um manipulador de emoções nato. Acabaram por começar a namorar. Só depois Rosa começou a conhecê-lo melhor, o seu feitio, o afastamento e incompatibilidade com os pais, as suas opções de vida, quer pessoais, quer políticas.

Ricardo conseguiu com o passar dos meses afastá-la da ligação familiar, dizendo que não gostava desta ou daquela pessoa. Queria que estivessem os dois isolados dentro de um mundo como se fosse um casulo só deles.
A situação foi piorando de tal modo que Rosa reacendeu de novo a paixão pelo professor. Sempre que tentava fugir daquele cerco, geravam-se discussões infindáveis e cada vez mais agressivas verbalmente. Mas teve de pesar nos dois pratos da balança entre a paixão impossível com o professor ou o desequilíbrio constante com Ricardo. Infelizmente, como considerou mais tarde, decidiu pelo segundo caminho. Só a mãe e o irmão mais velho sabiam da relação platónica que nunca assumira.

Rosa aceitou que se casasse com Ricardo e que partissem de imediato para uma colónia africana. Com isto resignou-se aos desejos do marido de se afastar de ambas famílias, dos amigos, do professor. Afastou-se de tudo o que lhe agradava e partiu para um lugar onde não sabia o que a esperava. Se uma nova vida, se mais do mesmo que até ali tanto a tinha marcado e magoado.
Um novo clima e novo local até fez inicialmente melhorarem o seu ânimo. Mas o isolamento e dificuldade em criarem novos amigos voltaram ao de cima.

Passados meses de terem chegado engravidou numa altura em que estava a idealizar uma escola, que se chamaria Escola Infantil, como não havia nenhuma. Teria um novo tipo de ensino mais moderno e de acordo com as novas tendências da pedagogia e métodos de ensino europeus. Mesmo no final da gravidez a escola abriu e teve um grande impacto na sociedade local. Com a passagem de boca a boca de como ela funcionava, começaram a surgir os pais que não queriam perder a oportunidade dos filhos estarem na escola com métodos vanguardistas de ensino.
Passado uma semana da filha Luísa ter nascido, já Rosa estava a acompanhar os alunos na escola. Valeu-lhe a grande dedicação da empregada Ofélia para ajudar após o nascimento da filha.

Os anos foram passando e Rosa de vez em quando recordava sozinha com saudade e algumas lágrimas, a paixão que tinha tentado esquecer. O marido sentia ciúmes do sucesso da escola da mulher e nem desconfiava e se apercebia das cartas que chegavam e partiam para longe.
Rosa escrevia ao professor a contar a experiência da escola, a sua evolução, o seu crescimento e as suas hesitações do caminho a seguir. O ex-professor respondia-lhe sempre. De longe, apoiava-a em tudo mas terminava sempre enviando cumprimentos para o marido. Nunca da parte dele houve qualquer falta de respeito, pelo casamento que ele sabia ser infeliz.

Quando a filha de Rosa ainda era uma menina, houve o acto bárbaro da parte do empregado Joaquim que trabalhava lá em casa desde o dia em que tinham chegado. Tinha-os ajudado a transportar e a montar os primeiros móveis da casa. Tinha plantado as flores e as árvores do jardim. Tinha sempre colaborado em tudo o que lhe era pedido. Construiu em madeira, o berço quando Luísa nasceu.
Rosa não se apercebeu logo o que se tinha passado. A sua cabeça estava sempre na escola para esquecer o cerco sufocante que o marido lhe fazia. Ofélia ainda a alertou que Luísa estava estranha. Queria estar sempre perto dela. Quase não dormia e não tinha apetite. Tinha medo da noite, chorava sem motivo aparente. Fugia de tudo e de todos. Não queria estar no quarto, mas também se recusava a estar no jardim. Algo de anormal se passava. Até que conseguiu que ela lhe dissesse que o Joaquim a tinha magoado, não percebendo felizmente, na sua inocência o que concretamente ele lhe tinha feito. Ofélia foi logo ter com Rosa a contar o que tinha acontecido com a filha e combinaram como iam proceder. Primeiro dizer a Joaquim para partir e só depois contar a Ricardo.

A reacção do pai foi tempestiva e exaltada, como era espectável. Decidiu, que Luísa ia partir de imediato para casa dos avós paternos na metrópole. Aceitou a contra gosto que a sogra, Inês, viesse para a sua casa para fazer mais companhia à filha que lamentava e não queria a partida de Luísa.
Foi quase um ano de desgosto, sofrimento e nem a companhia da mãe Inês a ajudava a superar a separação da filha. Foi o pior ano da sua vida. Além disso o marido isolava-a de todos os conhecidos e nem o simples acto de conviver, fora da escola, com as professoras e professores, ele tolerava. Somente tinham esporadicamente algum contacto e convívio ao fim-de-semana com um casal que trabalhava na rádio.

O que pareceu um período interminável acabou com a chegada da filha Luísa. Vinha ainda mais magra, mais distante, mais triste. A estadia fora de casa não tinha ajudado nada à recuperação da criança.
Mas chegou com um pedido difícil de concretizar. Queria ter um irmão. Foi tão persistente no pedido que os pais, talvez por não terem a consciência limpa pelo que lhe tinha acontecido há um ano acederem a conceber um irmão. Não foi fácil para ambos, pois eles encontravam-se arredados de actos sexuais há algum tempo. Mas conseguiram satisfazer o pedido irrecusável de Luísa.

Nasceu o João que era tal e qual a cara da mãe e da avó.
Foi tratado pela irmã como se fosse um boneco, ela que nem gostava de brincar com bonecas. Ela, a avó Inês, e a empregada Ofélia, foram quem cuidou dele nos primeiros anos de vida. Rosa tinha repetido o comportamento de quando tinha nascido a filha, e uma semana após o nascimento do filho, já estava de volta ao trabalho na escola.

Aquele afastamento completo do pai, e parcial da mãe, por se dedicarem excessivamente às suas escolas, levou a que os filhos nunca tivessem sentido em crianças e na sua juventude, um grande carinho e afecto da parte deles. Luísa estava mais ligada à avó Inês e João a Ofélia.
A relação com os outros avós paternos só se estreitou mais quando, vindos de África, Rosa e os filhos foram viver para casa dos sogros por não terem habitação própria nem capacidade financeira para tal. O período de dois meses antes da chegada de Ricardo foi um inferno, por se sentirem indesejados em casa. Abrandou depois, mas as relações pessoais continuaram difíceis. Ao João, com tenra idade, não era permitida qualquer tipo de brincadeiras. Naquela casa nunca tinham vivido crianças.

Rosa, quando voltou de África, e antes da chegada do marido, tentou reencontrar o professor da sua paixão reprimida. Queria saber se seria possível ter o apoio dele para uma mudança radical de vida. Só que da escola onde leccionava anteriormente já tinha saído e não lhe conseguiu encontrar o rasto. Fez várias tentativas junto de diversas colegas que sabiam da sua admiração pelo professor, mas também não foi bem-sucedida. Esta procura infrutífera deixou-a num estado de profunda tristeza e a caminho de uma depressão só adormecida quando voltou a trabalhar.
Passados uns anos, durante a juventude dos filhos, provocado também por ter havido uma maior disponibilidade temporal e proximidade física, Rosa passou a dedicar mais atenção aos filhos. Tal veio reflectir-se num maior conhecimento dos desejos e anseios deles e numa maior afectividade até aí não partilhada. Compensou assim também o afastamento que continuou do marido. Era uma situação típica dos casais naquela época, em que apesar de incompatíveis, só viviam juntos por causa dos filhos.

Rosa era enfermeira pediátrica, trabalhando em horários rotativos, apesar do marido não gostar muito que ela estivesse fora de casa. Quando, por opção de saúde, e a conselho médico, deixou de trabalhar dedicou-se a uma instituição ligada ao ensino. Também esta actividade deixava Ricardo inquieto, quando semanalmente dedicava algumas horas e estava ausente de casa.
As dificuldades de relacionamento entre os pais de João e Luísa foram-se mantendo durante toda a vida de ambos e eram do conhecimento da filha, através de confidências de Rosa. Os irmãos falavam por vezes entre si sobre este tema mas eles não viam saída para a situação existente.

A certo momento os filhos achavam que a mãe não andava bem psicologicamente e como se aproximavam os cinquenta anos de casados dos pais quiseram organizar um jantar onde apareceria a família e os poucos amigos que tinham ou tinham tido, alguns afastados há bastantes anos.
Organizaram uma festa inesquecível, mas não foi pelo que motivo que pensavam. Quando no final do jantar apareceu o champanhe para celebrar a relação de tantos anos de vida, a mãe disse que queria dizer umas palavras, e sem que ninguém o esperasse informou que aquele dia tinha outro fim que era o de dar a conhecer a decisão que tinha tomado naquela mesma manhã, que era separar-se e divorciar-se do marido Ricardo. Finalmente tinha conseguido, não sem bastante custo e guerras interiores, libertar-se da teia.


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Vidas Cruzadas

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