A Viagem

 
 

Joana abandona as partidas do aeroporto de Lisboa. Já passa das duas da manhã da noite de sexta-feira. Tinha ido a contragosto, levar o seu marido, que partia para Luanda, no voo TP0289, com a hora prevista de descolagem às 23H15. A despedida não tinha sido como tinham combinado no dia anterior, quando Rafael lhe tinha dito que ela não precisava de ir, pois apanhava boleia do colega com quem ia seis meses para África, onde ambos nunca tinham estado.

As semanas anteriores foram de grande agitação no casal. Ao fim de catorze anos de casados era a primeira vez que iam estar separados. A vida permanente em comum que tiveram desde o casamento idílico que se seguiu a um namoro prolongado de adolescentes criou a cada um uma sensação de falta de espaço próprio que estavam a ter dificuldade em gerir. Tinham perdido a autonomia individual.

Recentemente, Rafael passara pela azáfama de tratar do passaporte, do visto que nunca mais era libertado, das vacinas necessárias, da alteração das contas bancárias, para não surgir nenhum percalço que não pudesse tratar de longe enquanto estivesse ausente.

Tinha aceitado o trabalho no estrangeiro, para compensar com o alto salário que iria receber, a falta do ordenado de Joana desde que tinha ficado desempregada no início do ano, quando foi despedida da agência de publicidade onde sempre tinha trabalhado, a recibos verdes, como criativa.

Nos últimos meses, com o stresse da grande alteração de vida pela qual iria passar, Rafael tinha descurado a atenção e mimos que anteriormente dedicava a Joana. Sem o pretender, tinha-se afastado dela, talvez por querer antecipar o distanciamento físico que iriam ter com a emigração temporária que se aproximava.

Por seu lado Joana, desde Janeiro que estava em casa a tempo inteiro. Tinha tempo livre em excesso. Ainda não tinha conseguido encontrar maneira de como ocupar o horário do dia de trabalho agora vazio.

Inicialmente ainda se encontrou, para beber café ou almoçar, com os ex-colegas que tinham ficado na mesma situação que ela. Mas isso não a tinha ajudado a limpar a cabeça. Era um encontro de troca de angústias e de desespero que cada um(a) vivia, mas que Joana queria esquecer, para poder avançar com a sua vida.

No último período, em que ainda trabalhava começou a sentir algum interesse, pelo colega Vasco.

Ainda agora, a sair do aeroporto para ir ao seu encontro, não consegue perceber o que viu nele, desde o jantar de final do ano anterior em que ainda trabalhavam juntos na agência de publicidade “Look”, empresa onde ele ainda está a trabalhar.

Logo ele, que era da área financeira, com quem ela tinha permanentemente grandes guerras por achar que limitavam e castravam toda a imaginação do sector criativo da empresa. Sempre tinha considerado que todos os colegas daquele sector tinham as cabeças formatadas aos números, não conseguindo viver as emoções da vida.

Logo ele, que se aproximava dos sessenta anos, com cãs brancas e alguma barriga que Joana, vinte e dois anos mais nova, desdenhava habitualmente nos homens.

Logo ele, que tinha sido o porta-voz da administração invisível da empresa, sediada algures no estrangeiro, a dizer-lhe no primeiro dia do ano, que já não precisavam mais dos seus serviços, não sendo necessário ir trabalhar a partir do dia seguinte.

Logo ele, que a tinha feito sentir-se descartável, como uma garrafa de sumo já bebida ou uma fralda suja.

Joana enquanto aguarda, dentro do carro imóvel, na fila do parque de estacionamento do aeroporto para poder sair pela Via Verde, passam-lhe pela memória os últimos meses sem trabalho.

Depois de uma vida sem horários e de dedicação completa ao emprego e à carreira profissional, entrou num marasmo em que as horas não passam, ou correm a muito custo.

Inicialmente ainda continuou a ir ao ginásio, como forma de gastar energias e passar o tempo. Mas a falta de prazer e de dinheiro levou-a a abandonar o exercício físico. Começou a comer descontroladamente. Retomou o hábito de fumar, abandonado com muito esforço, uns anos antes. Descuidou-se e desleixou-se no visual que sempre tinha tido cuidado e atraente, enquanto trabalhava. Raramente se pinta. Quando Rafael saia de casa para trabalhar, ficava deitada a dormitar, porque nada a obrigava a levantar. Depois passeava-se de camisa de noite ou de robe pela casa, enquanto não se estiraçava em frente da televisão num zapping imparável. Quando via um dos anúncios em que tinha colaborado na “Look”, ficava tensa, irritada e desligava a televisão, atirando o comando para longe.

Passado algum tempo as idas à cozinha e à dispensa à procura de qualquer coisa para comer deram-lhe a ideia que, como gostava de fazer bolos e doce, podia começar a vendê-los a particulares e assim ocupar os dias, ganhando ao mesmo tempo, algum dinheiro que Rafael sempre resistia a dar-lhe. O facto de estar dependente, ela que sempre fora independente desde muito nova, estava a dar cabo dela. Tinha-se habituado a gastar todo o dinheiro que recebia em bens supérfluos, principalmente em roupa, sapatos e acessórios, descurando a poupança para algum imprevisto, como o que lhe veio a acontecer.

Quando começou a amadurecer a ideia do negócio da comida, veio ao de cima a experiência profissional. Tinha de arranjar um nome para o divulgar na internet e nas redes sociais. Surgiram-lhe vários nomes: Sabores de mim; Os Meus Sabores; Doces Meus, Os Meus Doces. Mas nenhuma das hipóteses a satisfazia. Tinha sido tão criativa quando a imaginação lhe era encomendada e agora não o conseguia fazer para si própria. Suspeitava que a inspiração tinha morrido, quando saiu pela última vez a porta da “Look”. Pôs-se diante do espelho e questionou-se o que se passaria com ela.

Passou por uma fase de grande desânimo e um estado de depressão, da qual conseguiu sair pelos seus próprios meios, contra todas as expectativas, as de Rafael incluídas.

Muito ajudou a continuação dos contactos que nunca deixou de ter com Vasco. Encontravam-se inicialmente num café ou restaurante num local menos conhecido. Quando os encontros se tornaram mais frequentes, Joana inventou uma amizade do ginásio fictícia, chamada Vanda, escondendo assim do marido o que realmente andava a fazer. Quando se encontravam à noite, Joana dizia que ia ao cinema. Para se precaver de alguma pergunta inesperada de Rafael, consultava no site do cinema o resumo do filme e os actores intervenientes.

Joana não se reconhecia pelo facto de estar a passar por uma situação que sempre condenara. Vivia o cliché de uma mulher, que numa fase frágil, arranjara um amante. Que enganava o marido, não sendo capaz de acabar com um casamento que já não vivia. Que tinha uma relação com um homem casado que sucessivamente prometia a troca da mulher por si. Estava completamente fora dos seus padrões morais e sociais.

Finalmente quando Joana consegue sair do parque do estacionamento número dois do aeroporto, por o problema informático que havia no modo de pagamento já estar resolvido, tenta telefonar novamente a Vasco. Já anteriormente quando soubera que o avião estava atrasado cerca de duas horas para a partida, tinha ido à casa de banho e tinha-lhe telefonado, para o avisar da demora. Estranhou o facto de que agora que se ia “libertar” de Rafael, durante seis meses, tenha recebido uma reacção tão fria e indiferente da parte de Vasco. Talvez tivesse adormecido enquanto a esperava.

Agora quando lhe telefona, pela segunda vez, Vasco não atende. Mas de qualquer modo segue a caminho do encontro combinado, na casa emprestada ali próximo, na Alta de Lisboa.

Apesar da hora, o trânsito está um caos na Segunda Circular. Os carros só circulam numa faixa para cada lado. Num sentido houve um acidente, provavelmente grave. Há várias ambulâncias e viaturas dos bombeiros e da políca, assinalados pelos pirilampos azuis e amarelos. Na direcção em que Joana vai, estão a asfaltar grande parte da via a que se acumula a curiosidade dos automobilistas sobre o que se passa do outro lado.

Mais um contratempo para o reencontro dos dois amantes.

O que Joana tem vivido até a tem feito esquecer o estigma de desempregada com que já se sentiu. O negócio dos doces vai-lhe ocupando o tempo minimamente, dando-lhe dinheiro para as despesas pessoais que reduziu de uma forma drástica. Passou a ter de decidir onde o gasta com parcimónia. Só o essencial ficou, o desnecessário desapareceu. Deixou de se passear pela baixa ou pelos centros comerciais a cobiçar nas montras, roupa da moda.

Só sai de casa para as entregas das encomendas, a ida ao supermercado ou para os encontros fortuitos com Vasco. As saídas com Rafael já são raras, desculpando-se sempre com os doces e bolos que tem que fazer, apesar de os poder pôs no forno ou no frigorífico em outra altura qualquer.

Joana acaba de estacionar à porta da casa onde combinou ir ter.

Espreita para cima, para o segundo andar esquerdo. A luz da sala ainda está acesa. Ao contrário do que pensou no caminho até ali, Vasco não desistiu de esperar por ela.

Toca à campainha com o toque combinado, por não querer utilizar o código de quatro algarismos que abrem a porta. É uma forma que acertara, desde o início da relação que têm, caso surgisse algum imprevisto, que impedisse Joana de subir. A porta não se abre. Vai para o carro e volta a olhar na direcção da janela iluminada, onde surge Vasco que lhe faz um sinal para ela subir.

Quando entra em casa, Joana é recebida com um beijo numa das faces, a fugir da boca, ao contrário do que é habitual. Vasco diz-lhe que já não a esperava ver nessa noite, por ser tão tarde, apesar de ter adormecido no sofá a ver televisão sem som. Queria ter uma conversa calma com ela, mas achava que não era a hora apropriada. Quando Joana se decide ir embora, e lhe vira as costas, Vasco puxa-a para si, por um dos braços com demasiado força e diz-lhe de supetão: “A nossa relação tem de acabar. Aliás, ela para mim já acabou, pois não posso continuar a fazer isto à minha mulher, de quem nunca deixei de gostar, apesar da nossa aventura.”

Joana fica sem palavras, solta-se, e sai disparada pela porta. Contrariamente ao seu comportamento habitual, não é capaz de enfrentar o balde de água fria que tinha acabado de receber. Nas situações adversas sempre dera luta e reagira frontalmente, argumentando e lutando pelo que achava melhor. Pela cabeça passa-lhe um pensamento que já tinha negado a si própria. Talvez Vasco se tivesse aproveitado da sua fragilidade da situação de não ter conseguido trabalhar depois da saída extemporânea da “Look” e do período conjugal menos bom, que tinha passado posteriormente.

Joana vai para casa e atira-se para o sofá na sala, meia deitada, meia sentada. Olha no vago. À frente dos seus olhos está uma garrafa de gim que na noite anterior tinha aberto e bebido cerca de um terço, enquanto Rafael fazia a mala no quarto. Resiste a beber, desviando o olhar e virando-se para a estante onde estão espalhadas fotografias emolduradas dos bons momentos que viveu com o marido. A fotografia mais escondida, num canto, é a tirada num dia em que decidiram ter um filho, que nunca chegaram a concretizar.

Fica num estado de letargia alguns minutos, que lhe parecem horas. A cabeça está num turbilhão de sentimentos cruzados que não está a conseguir controlar. Mantem-se numa moleza, que mesmo assim não a deixa dormir. Quando o dia nasce, a luz obriga-a a semicerrar os olhos. Não tem forças para ir baixar a persiana.

Joana olha para o telemóvel para ver as horas. No mesmo instante, ele vibra e toca, surgindo o nome Rafael.

Não estava à espera. Quando atende, ouve do outro lado: “Olha, tenho de ser muito rápido. Cheguei bem e apesar de só serem dez horas está um calor húmido insuportável. Mas o que eu queria mesmo dizer-te é isto: Apesar de tudo o que possa ter acontecido. Gosto muito de ti, meu amor!”.

Quando Joana se prepara para responder, a chamada cai.

Já sem Rafael do outro lado, solta um gemido e diz qualquer coisa inaudível.

 

 


Sem comentários:

Enviar um comentário

a sua opinião