Por ti minha alma soffre


 
 
Encontrei este cartão ao limpar uma cómoda esquecida no sótão. Estava debaixo do papel, queimado pelo tempo, que forrava o fundo da última gaveta. Alguém o quis esconder de olhares indesejados, virando o texto contra a madeira cheia de caruncho. Curiosamente o cartão sobreviveu incólume a gerações que por ele passaram sem descobrirem o seu esconderijo.
Não consigo saber a sua origem.
A cómoda já mudou várias vezes de casa dentro da mesma família, pelo desmanchar de casas sucessivas de quem a tinha consigo ou por não se enquadrar no tipo de decoração. Deve ser uma das peças de mobiliário mais viajada do país. Não porque tenha grande valor em si. Não se lhe reconhece nenhum estilo de época.
As suas quatro gavetas devem guardar sentimentos secretos.
Por o cartão se encontrar intacto só há duas opções: ou não foi enviado ao pretenso(a) candidato a namorado(a) ou foi devolvido para dar uma esperança de poder haver nova tentativa, quem sabe, talvez de resposta mais positiva.
Uma coisa é certa, no caso de o cartão ter sido enviado não houve nenhuma resposta negativa, ao pedido de namoro, pois o canto superior esquerdo não foi dobrado, conforme o procedimento indicado.
No entanto, também não teve nenhuma reacção positiva, com a aceitação do pedido de namoro, pois o canto superior direito encontra-se irrepreensível, sem nenhuma dobra.
Mas o que mais me surpreendeu na missiva amorosa é a circunstância de que a frase “Por ti a minha alma soffre” estar associada ao pedido “E feliz seria se V. Ex. aceitasse os meus protestos de amor”.
Hoje em dia a palavra protesto identificamos com tudo o que vemos ou nos é dirijo e que consideramos que é injusto e assim queremos manifestar a nossa discordância. Hoje, nunca será possível associar estas duas palavras: protesto e amor. Poderá haver dedicação no protesto, mas nunca amor.
O nosso amor-próprio ou auto-estima, o nosso amor por quem nos é próximo, seja familiar ou amigo está isento de protesto, mas está cheio de dedicação e entrega.
Por isso a frase “Por ti a minha alma soffre” não tem sentido quando o amor existe. Ele é uma partilha de sentimentos com quem mais gostamos.


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