Uma Vida


Nasceu em 1996 mas esteve no escuro durante várias anos, fechada em caves fortes e bem escondida dos olhares alheios.
No final de 2001 saiu do seu esconderijo tendo finalmente visto a luz do dia.

Nesse momento ainda mantinha o peso da data da sua criação. Pouco mais de sete gramas e 23,25 mm de cintura e 2,33 mm de altura. É um pouco atarracada, mantendo a sua forma cilíndrica. É ligeiramente pedante no seu dourado e prateado que veste, com um cinto com seis segmentos alternados entre três lisos e três denteados.
No dia da sua nascença caiu com um barulho metálico no meio de muitas irmãs da mesma ninhada. Eram todas clonadas uma das outras sem terem conhecido a progenitora. Quando olhavam para o alto, tentavam proteger-se das gémeas que se lhes sobrepunham ao cair em cima e já não deixavam ver nada do que se estava a passar ao seu redor.

Passados segundos o chão começou a fugir-lhes por debaixo e entraram num rodopio que as levou a um tubo que as cuspiu para cima de um tapete. Nesse chão, sem fim, umas luzes muito fortes eram sombreadas por umas mãos gigantescas, com luvas brancas, que pegavam numa ou outra e atiravam, sem lógica aparente e com desprezo, para o fundo de um caixote como se fossem lixo.
As que não seguiam esse caminho continuavam a sua vida a rolar até serem agrupadas. Cada grupo de vinte e cinco era envolvido em plástico. Cada conjunto de cinquenta sacos era metido numa caixa de cartão. Cada aglomerado de cem caixas era posto em cima de uma mesa com pés curtos. E depois de isto tudo ainda era embrulhado numa película como se fossem de seguida ser congeladas. Não havia nenhuma possibilidade de fuga, para cada uma das cento e vinte e cinco mil irmãs, que ali se encontravam.

Esteve, portanto, sem nenhuma utilidade durante pouco mais de cinco anos, enclausurada sem saber onde. Desde a sua chegada àquela prisão foram aumentando diariamente a quantidade de mesas baixas, com irmãs da mesma idade, com outras mais velhas e muitas mais novas com apelidos iguais mas distintos nomes próprios. O espaço onde estavam, que parecia infinito à sua chegada, estava cada vez mais reduzido.
No dia que pensavam que lhes tinha chegado a liberdade, começaram a ser carregadas em cima de camiões. Acompanhadas por jipes que apitavam como se fossem para o hospital ou numa qualquer emergência, seguiram para outra prisão, mais pequena, sobre a protecção de militares armados como se estivessem a prepararem-se para a guerra.

Pela primeira vez algumas das irmãs foram separadas de outras semelhantes assim como das mais velhas e das mais novas. Aproximava-se algum acontecimento que parecia programado. As quantidades em que tinham sido divididas eram idênticas. Mantinha-se a impossibilidade de enxergar a luz solar, que já lhes estava a fazer falta, por estarem a ficar pálidas e sem brilho.
Quando a contagem decrescente se aproximava para o primeiro dia do ano havia à sua volta uma actividade inusitada e um movimento frenético. Todas elas começaram a ser espalhadas pelo local que lhes iria permitiria renascer e ganhar alguma utilidade.

Como eram vários milhões que estavam na mesma situação, vamos concentrar-nos só numa, que, por facilidade vamos denominar de Vil. Se não fosse um nome próprio poderia ser sinónimo de canalha, infame ou miserável. Curiosamente pode ser um substantivo masculino, feminino ou um adjectivo. O seu contrário ou antónimo é nobre.
Portanto Vil estava prestes a ter alguma utilidade para a sociedade após a hibernação a que tinha sido forçada.

O sossego de onde vinha tinha-se transformado numa agitação que não estava à espera.
Começou por ser fotografada dos dois lados, como se tratasse de uma criminosa a iniciar o seu registo do cadastro. A sua imagem foi exposta na televisão, chamando à atenção para quem a encontrasse.

Passou por tudo quanto era sítio, andando de mão em mão, desde as mais bem cuidadas às muito sujas e peganhentas.
Esteve no fundo de várias caixas em compartimentos separados das mais novas e das mais velhas, mas junta com as da mesma idade. Visitou sítios muito chiques e outros de pobreza extrema.

Teve cheiro a peixe e outros odores mais agradáveis.
Conheceu umas irmãs da mesma idade mas que falavam línguas que nunca tinha ouvido.
Andou embrulhada em lenços ou perdida na areia da praia.

Caiu muitas vezes ao chão atraindo a atenção de quem estava próximo.
Foi amada, desejada e estimada alternadamente com períodos em que esteve esquecida e desprezada.

Certo dia foi protagonista de um desentendimento entre dois homens, quando se ouviu a frase: Só 1 euro de esmola. Isso já não dá a ninguém.
Passados poucos dias, por ter atingido o limite de idade, foi cremada ou melhor derretida, pois já não havia motivo para existir.

 


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