É domingo cedo. Está um sol
radiante que faz reflectir toda a luminosidade da cidade branca.
Tomo um pequeno-almoço rápido e
leve para sair rapidamente para o ar hoje menos poluído por não ser dia de
invasão de carros, autocarros, táxis e carrinhas barulhentas que se cruzam e
descruzam em alvoroço.
Visto uma roupa agradável e
fresca apesar dos cerca de 8 graus, após uma noite gelada.
Chego ao jardim, perto de casa,
onde os mais pequenos já se baloiçam, já escorregam e por vezes soltam uma lágrima
rapidamente aconchegada pelos pais atentos e protectores.Sigo caminho e ao passar à porta de um café da zona estranho a ausência de um mendigo, sem uma perna e sentado em cima de uma caixa de cartão espalmada, que costuma agitar uma lata ferrugenta com um metal dentro a fazer de moeda, que com este som, tenta atrair a atenção de quem distraidamente passa à sua frente.
Continuo a viagem e chego a um largo onde no quiosque dos jornais há alguns velhotes a lerem os títulos do dia, pois hoje não há os jornais grátis distribuídos à boca da entrada do metro.
Após uma longa subida, sem me
cruzar com ninguém a pé e onde só o habitual autocarro passou para baixo, estão
umas paredes enormes de um quartel abandonado que estão forradas de pinturas
murais.
Uma jovem está a fotografar todos
os temas de arte urbana de uma qualidade e actualidade de temas que têm um
impacto arrebatador, que ninguém que passa pode ignorar.
O caminho pedestre, sem caminho
pré-escolhido, coloca-me numa zona de uma cadeia citadina masculina onde está
uma fila de pessoas a aguardar a entrada para a visita semanal. Há pessoas que carregam
todo o tipo de coisas. Levam desde rádios e televisões a outros pequenos
electrodomésticos escondidos dentro de sacos que vão ser vistoriados à entrada.
Há de tudo naquela fila. Desde o
pequeno mimo de mãe, pai, mulher marido ou filho e filha. Desde o primeiro
desenho infantil, da 1ª fotografia da bebé; daquela comida ou petisco dos bons
tempos de liberdade antes do acto irreflectido que levou à prisão, até às
meias, camisolas ou calças.
Ali, enquanto se espera a entrada,
antevêem o agradecimento pela simples presença. Ali, alheados das conversas que
os rodeiam, imaginam uma carícia nervosa, um quente abraço e um sentido beijo,
que desejam que se concretizem.
Da porta de saída após a visita,
emerge um grupo de 6 pessoas que transportam orgulhosamente entre braços
elevados da mais jovem, como um troféu, um barco em forma de caravela com cerca
de meio metro de cumprimento e quarenta centímetros de altura e trinta de
largura, todo ele construído com paus de fósforos por um familiar preso que
lhes ofereceu como sinal de querer mostrar que na prisão conseguiu ter uma
actividade lúdica e conseguiu reprimir e controlar toda a sua agressividade.
Virando em direcção à enorme alameda ajardinada encontro alguns ciclistas, vários corredores e outros caminhantes como eu. Começam a surgir turistas que cada vez vão sendo em maior número.
À minha frente segue um
sem-abrigo com um saco enorme em cada mão onde tem todos os seus pertences como
um cobertor, roupas muito usadas e uma garrafa de vinho meio bebida.
Inesperadamente pára. Virado para o outro lado do jardim começa a chorar
altíssimo e sem fim enquanto agarra a cabeça com as duas mãos. Queixa-se entre
soluços que se ouvem quando já estou distante, da desgraça que é a sua vida em
que está abandonado por tudo e por todos.
Mais abaixo na praça, cruzo-me
com outro sem-abrigo que em pé frente a um sinal da passadeira para peões está
estático. Está embrulhado em cobertores
e num enorme plástico muito utilizado. O seu odor abrange uma área à sua volta
que reflecte o estado de degradação física e moral em que se encontra.
Sigo avenida abaixo, onde as
lojas de luxo abrigam, nas suas entradas, mais algumas pessoas sem tecto que
começam a despertar da noite gélida. Espreguiçam-se e começam a arrumar os seus
poucos bens em sacos ou a tentar esconder as caixas de cartão que fizeram, mais
uma noite, de um lar muito pouco doce.
Os turistas seguem no mesmo
sentido olhando para os edifícios e para a vegetação que ficam nas suas fotografias,
alheando-se da vida à sua volta.
Num quarteirão mais á frente, um
desgraçado da vida, faz a sua higiene num bebedouro de água onde molha a cara e
lava os dentes, com uma escova e pasta dentífrica, tentando manter um mínimo de
dignidade.
Na praça central, que já viu de
tudo, desde encontros e desencontros e todo o tipo de manifestações pessoais e
colectivas, que sempre serviu de ponto de encontro das mais variadas
nacionalidades e origens, nota-se uma invasão pacífica de chineses, de alemães
ou de africanos que são os novos colonizadores desta cidade.
Na rua fechada ao trânsito e
cheia de passeantes, que se dirige para o rio, espalham-se esplanadas e lojas,
algumas abertas apesar de ser dia de descanso.
Imóvel, numa esquina, está também
um homem-estátua, todo ele cinzento como a sua auto-estima a fazer de músico de
outros tempos ao som de uma música roufenha e indecifrável para quem passa e
por vezes atira uma moeda para o chapéu à frente dos seus pés.
Eis-me chegado à praça da
cidade sobranceira ao rio e onde máquinas fotográficas fixam tudo o que é
possível enquanto se cruzam para cá e para lá ciclistas e segways ou por onde passam os veículos amarelos fixos aos seus
caminhos e fazer tlim-tlim.
Nuns armazéns abandonados virados
ao rio, que albergaram muita gente à procura de um tecto durante a noite,
começam a sair pessoas que vão pedindo cigarros ou uma moeda a quem passa. Alguns
ainda agarram nas mãos garrafas já vazias.
As suas caras além de fome
mostram dependência de bebidas e drogas como tentativa desesperada de saírem no
buraco onde se encontram.
Ainda se vê uma ou outra fogueira
feita com restos de paletes de madeira apanhadas e que serviram para dar um
mínimo de conforto nocturno.
Já passou mais de hora e meia
desde que comecei a minha caminhada por esta cidade, que me adoptou, quando
cheguei de outras paragens.
Decido voltar o meu caminho para o
ponto de partida.
Uso o percurso que escolho muitas
vezes para desanuviar a cabeça da situação em que me encontro recentemente em
que passei a ser mais uma milésima parte da percentagem dos desempregados deste
país.
Considero que sou um beneficiado,
nesta cidade, pois tenho uma família, amigos, uma casa e a possibilidade de ter
dinheiro para viver.
Fiz uma opção quando caí nesta
nova situação de não querer ser como quem observo quando passo pelos jardins
desta cidade onde vejo pessoas que vegetam, lêem o jornal ou trocam doenças
entre si.
Não quero ser como as pessoas que
não saem de casa e passam o dia a dormir virados para a televisão que lhes dá
programas sem sentido, quando não vão ao centro de saúde.
Não quero ser como os idosos em
que olhamos para eles e só vemos que esperam a hora da morte.
Escolhi continuar a fazer
caminhadas, saindo de casa.
Decidi voltar a escrever, como
testemunha este escrito.
Optei por me dedicar ao
voluntariado, ajudando a quem precisa do que eu posso dar.
Para mim, a vida continua!
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