2013, Fevereiro


É domingo cedo. Está um sol radiante que faz reflectir toda a luminosidade da cidade branca.
Tomo um pequeno-almoço rápido e leve para sair rapidamente para o ar hoje menos poluído por não ser dia de invasão de carros, autocarros, táxis e carrinhas barulhentas que se cruzam e descruzam em alvoroço.

Visto uma roupa agradável e fresca apesar dos cerca de 8 graus, após uma noite gelada.
Chego ao jardim, perto de casa, onde os mais pequenos já se baloiçam, já escorregam e por vezes soltam uma lágrima rapidamente aconchegada pelos pais atentos e protectores.


Sigo caminho e ao passar à porta de um café da zona estranho a ausência de um mendigo, sem uma perna e sentado em cima de uma caixa de cartão espalmada, que costuma agitar uma lata ferrugenta com um metal dentro a fazer de moeda, que com este som, tenta atrair a atenção de quem distraidamente passa à sua frente.

Continuo a viagem e chego a um largo onde no quiosque dos jornais há alguns velhotes a lerem os títulos do dia, pois hoje não há os jornais grátis distribuídos à boca da entrada do metro.

Após uma longa subida, sem me cruzar com ninguém a pé e onde só o habitual autocarro passou para baixo, estão umas paredes enormes de um quartel abandonado que estão forradas de pinturas murais.


Uma jovem está a fotografar todos os temas de arte urbana de uma qualidade e actualidade de temas que têm um impacto arrebatador, que ninguém que passa pode ignorar.



O caminho pedestre, sem caminho pré-escolhido, coloca-me numa zona de uma cadeia citadina masculina onde está uma fila de pessoas a aguardar a entrada para a visita semanal. Há pessoas que carregam todo o tipo de coisas. Levam desde rádios e televisões a outros pequenos electrodomésticos escondidos dentro de sacos que vão ser vistoriados à entrada.
 
 
 Há de tudo naquela fila. Desde o pequeno mimo de mãe, pai, mulher marido ou filho e filha. Desde o primeiro desenho infantil, da 1ª fotografia da bebé; daquela comida ou petisco dos bons tempos de liberdade antes do acto irreflectido que levou à prisão, até às meias, camisolas ou calças.
Ali, enquanto se espera a entrada, antevêem o agradecimento pela simples presença. Ali, alheados das conversas que os rodeiam, imaginam uma carícia nervosa, um quente abraço e um sentido beijo, que desejam que se concretizem.

Da porta de saída após a visita, emerge um grupo de 6 pessoas que transportam orgulhosamente entre braços elevados da mais jovem, como um troféu, um barco em forma de caravela com cerca de meio metro de cumprimento e quarenta centímetros de altura e trinta de largura, todo ele construído com paus de fósforos por um familiar preso que lhes ofereceu como sinal de querer mostrar que na prisão conseguiu ter uma actividade lúdica e conseguiu reprimir e controlar toda a sua agressividade.

Virando em direcção à enorme alameda ajardinada encontro alguns ciclistas, vários corredores e outros caminhantes como eu. Começam a surgir turistas que cada vez vão sendo em maior número.

À minha frente segue um sem-abrigo com um saco enorme em cada mão onde tem todos os seus pertences como um cobertor, roupas muito usadas e uma garrafa de vinho meio bebida. Inesperadamente pára. Virado para o outro lado do jardim começa a chorar altíssimo e sem fim enquanto agarra a cabeça com as duas mãos. Queixa-se entre soluços que se ouvem quando já estou distante, da desgraça que é a sua vida em que está abandonado por tudo e por todos.
Mais abaixo na praça, cruzo-me com outro sem-abrigo que em pé frente a um sinal da passadeira para peões está estático. Está  embrulhado em cobertores e num enorme plástico muito utilizado. O seu odor abrange uma área à sua volta que reflecte o estado de degradação física e moral em que se encontra.

 
Sigo avenida abaixo, onde as lojas de luxo abrigam, nas suas entradas, mais algumas pessoas sem tecto que começam a despertar da noite gélida. Espreguiçam-se e começam a arrumar os seus poucos bens em sacos ou a tentar esconder as caixas de cartão que fizeram, mais uma noite, de um lar muito pouco doce.
Os turistas seguem no mesmo sentido olhando para os edifícios e para a vegetação que ficam nas suas fotografias, alheando-se da vida à sua volta.
Num quarteirão mais á frente, um desgraçado da vida, faz a sua higiene num bebedouro de água onde molha a cara e lava os dentes, com uma escova e pasta dentífrica, tentando manter um mínimo de dignidade.
 
Na praça central, que já viu de tudo, desde encontros e desencontros e todo o tipo de manifestações pessoais e colectivas, que sempre serviu de ponto de encontro das mais variadas nacionalidades e origens, nota-se uma invasão pacífica de chineses, de alemães ou de africanos que são os novos colonizadores desta cidade.
 

 
Na rua fechada ao trânsito e cheia de passeantes, que se dirige para o rio, espalham-se esplanadas e lojas, algumas abertas apesar de ser dia de descanso.
Imóvel, numa esquina, está também um homem-estátua, todo ele cinzento como a sua auto-estima a fazer de músico de outros tempos ao som de uma música roufenha e indecifrável para quem passa e por vezes atira uma moeda para o chapéu à frente dos seus pés.

 
Eis-me chegado à praça da cidade sobranceira ao rio e onde máquinas fotográficas fixam tudo o que é possível enquanto se cruzam para cá e para lá ciclistas e segways ou por onde passam os veículos amarelos fixos aos seus caminhos e fazer tlim-tlim. 
 
No amplo caminho junto ao rio que contorna armazéns, restaurantes e linha de comboio, espalham-se dezenas, senão centenas de praticantes de diferentes actividades físicas. A correr, a andar de bicicleta, a caminhar em passo acelerado, como eu, ou simplesmente a passear e a usufruir de um solo que vai começando a aquecer timidamente o dia de inverno. Os turistas, beneficiando da diferença de temperaturas para os seus países deliciam-se expondo os corpos ao sol. Os pescadores espalham-se pela margem do rio à espera de apanhar algum peixe distraído.

Nuns armazéns abandonados virados ao rio, que albergaram muita gente à procura de um tecto durante a noite, começam a sair pessoas que vão pedindo cigarros ou uma moeda a quem passa. Alguns ainda agarram nas mãos garrafas já vazias.
As suas caras além de fome mostram dependência de bebidas e drogas como tentativa desesperada de saírem no buraco onde se encontram.

Ainda se vê uma ou outra fogueira feita com restos de paletes de madeira apanhadas e que serviram para dar um mínimo de conforto nocturno.

Já passou mais de hora e meia desde que comecei a minha caminhada por esta cidade, que me adoptou, quando cheguei de outras paragens.
Decido voltar o meu caminho para o ponto de partida.

Uso o percurso que escolho muitas vezes para desanuviar a cabeça da situação em que me encontro recentemente em que passei a ser mais uma milésima parte da percentagem dos desempregados deste país. 
 
 
Considero que sou um beneficiado, nesta cidade, pois tenho uma família, amigos, uma casa e a possibilidade de ter dinheiro para viver.

Fiz uma opção quando caí nesta nova situação de não querer ser como quem observo quando passo pelos jardins desta cidade onde vejo pessoas que vegetam, lêem o jornal ou trocam doenças entre si. 
 
Não quero ser como as pessoas que não saem de casa e passam o dia a dormir virados para a televisão que lhes dá programas sem sentido, quando não vão ao centro de saúde.
Não quero ser como os idosos em que olhamos para eles e só vemos que esperam a hora da morte.
Escolhi continuar a fazer caminhadas, saindo de casa.

Decidi voltar a escrever, como testemunha este escrito.
Optei por me dedicar ao voluntariado, ajudando a quem precisa do que eu posso dar.

Para mim, a vida continua!
 
 

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