Hoje foi-me atribuído um número. Um milhão, seiscentos e
trinta e sete mil, quatrocentos e um. Este número de sete dígitos foi o número
de baptismo que me foi atribuído no centro de emprego.
Identifico perfeitamente os padrinhos.
De um lado a gestão incompetente e danosa numa empresa, por
uma administração que manipula os números e as pessoas a seu belo prazer e
impunidade, que levou a um despedimento colectivo.
Do outro lado o chamado estado em que a face visível é a de mais
um governo, emaranhado em interesses pouco transparentes, que mostra a mesma
incapacidade de gerir um país, por não o conhecer.
Quer para uns, como para outros, é-lhes menos incómodo que eu
tenha um número em substituição de uma identidade.
Curiosamente, isto é a antítese de como fui recebido e
tratado, tal como todas as outras pessoas que se encontravam no centro de
emprego, por uma atenciosa funcionária pública, que hoje estava de um lado da
secretária, mas não sabe se qualquer dia não estará do lado oposto da mesma.
Despediu-se com uma frase muito simples, que conseguiu amenizar
o que tinha visto desde que tinha chegado, dizendo: “ Boa sorte! Senhor …”.
Passava pouco das 8 horas, quando cheguei ao centro de
emprego. Numa fila, ao longo do prédio, estão 13 pessoas. Na entrada, um sem-abrigo
dorme enfiado dentro de uma caixa de cartão enorme, ignorando o que se passa
todos os dias ao seu lado.
O único som é o ruído do trânsito matinal.
Ninguém fala. A maioria dos rostos olha o chão. Grande parte
são homens. Alguns com a barba por fazer, acendendo cigarros uns nos outros.
Passado nem um minuto chega um jovem de vinte e poucos anos
que fica atrás de mim. Está impaciente. Não pára quieto na fila. Percebo o
nervoso dele. Eu já estou na casa dos sessenta anos. Trabalho há quase quarenta
anos, o futuro é mais curto. Mas ele está no início de vida. Provavelmente
ambicionava casar, ter filhos, mas a expectativa perante o que se passa com ele
e à sua volta tira-lhe todos os dias o sono e apaga-lhe os sonhos. Tem um ar
tão triste e derrotado que nem consigo falar com ele e dar-lhe um bocado da
minha esperança.
Nos carros que descem a rua, algumas caras observam a fila
que todos os dias parece ser maior. Outras cabeças, como as avestruzes que as
enfiam na terra, não se viram como que tentando ignorar o que está ali ao lado.
A fila continua a crescer. Já estão cerca de trinta pessoas. De
vez em quando algumas abandonam a fila para tomar uma bebida quente no café do outro lado
da rua.
Antes de mim, tinha chegado um homem, talvez o mais andrajoso
e triste, com barba de pelo menos três dias. Tira do bolso uns óculos meio
partidos, presos por um fio e começa a fazer sudoku, com um lápis minúsculo,
numa revista tão sebenta como a gabardina que traz vestida.
A média de idades, de quem espera pela abertura da porta é de
cerca de 45 / 55 anos. Tirando o jovem atrás de mim, não vejo mais nenhum. Acho
estranho, tendo em conta as notícias diárias de que o desemprego jovem é muito
grande e não pára de crescer. Talvez porque a precaridade é
tão alta entre eles, que nem venham aqui pois não esperam poder receber nada em
troca. Nem hipótese de emprego, nem direito a um qualquer subsídio, porque
trabalharam com recibos verdes.
A fila é cada vez mais longa. Já estão quase cinquenta
pessoas.
Começam finalmente a ouvir-se algumas conversas.
Inicialmente em línguas não identificáveis. Alguns são africanos, outros oriundos de leste ou da América Latina.
Vieram à procura de uma vida melhor. Agora que isso lhes é negado, nem têm
possibilidade de voltar às origens.
Ouve-se agora alguém a falar português. Em alta voz reclama e
protesta quanto ao facto de a justiça ser desigual para os pequenos e para os
grandes. A indignação é visível em quem acha que a sociedade não lhe retribuiu
o que deu numa vida de trabalho.
Nenhuma voz se junta ao protesto. A
anuência é silenciosa. Ficam-se pelo menear
afirmativo de algumas cabeças e sorrisos de complacência.
Faltam quinze minutos para o início do atendimento. A fila
movimenta-se porque a porta se abriu para identificação e encaminhamento de
quem ali está.
Lá dentro as cadeiras de quem espera para ser atendido ocupam
a maioria do espaço. Cinco secretárias, ainda vazias, serão o destino de todos
consoante as senhas brancas, rosas ou verdes, que cada um tem.
A fila continua a aumentar. Já chega às sete dezenas. Já se
vêem mais jovens, que só agora chegaram. Vêem-se mais estrangeiros, com
dificuldade de se fazerem entender.
Lá dentro, para esquecer o tempo, uns jogam no telemóvel.
Outros lêem o jornal grátis que receberam. Muitos não se sentam nas cadeiras
disponíveis por não conseguirem esconder o nervosismo. Nesse grupo está incluído
o jovem que estava atrás de mim. Disfarça, lançando um olhar distraído sobre todos
os cartazes e folhetos espalhados na sala. Até vai à casa de banho.
Levei um livro para ler, mas nem o abro. Tudo o que se passa
à minha volta não o permite. Aproveito para tomar as notas do que quero escrever
depois. É o meu escape. A minha fuga.
Cada nova entrada na sala, revela uma cara à procura de
alguém conhecido, com quem partilhar o infortúnio, mas ao mesmo tempo desejando
não encontrar ninguém, por se sentir numa situação que envergonha e que coloca em
baixo a auto-estima.
Finalmente o ecrã chama por mim. Senha rosa B43.
Ao contrário do que acontece no talho do supermercado, quando
temos uma senha, ninguém faltou à chamada.
Entrego os documentos que a senhora me vai pedindo. Em frente
ao computador vai introduzindo outros dados. A certa altura o sistema
informático bloqueia e não quer andar mais. Ficamos a olhar um para outro
durante cerca de dez minutos. Pede-me desculpa várias vezes pelo sucedido, como
se ela tivesse alguma culpa nisso. Apercebo-mo como as outras pessoas são
atendidas ao meu lado.
Entrega-me uma folha com os meus direitos e deveres
relativamente a esta nova situação de desempregado, completando-a com uma
explicação verbal.
Promete-me completar o processo mais tarde quando o
computador se conseguir ligar ao outro do ministério que irá pagar o subsídio.
Tratou-me sempre com muita cordialidade e diria mesmo com
algum carinho. Isso mesmo se reflectiu quando se despediu e me disse:
“ Boa sorte! Senhor …”.
Tinha voltado a ter nome.
Lá fora, na rua, a fila continua a crescer, apesar da sala
apinhada!
Até quando? Pensei eu.
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